671 – “De repente, um cantador”, de Mauri Noronha (PE) é pitanga que arranha peles de pêssego

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Abro a porta da rua aqui no Solar da Lageado e a menos de quatro passos encontro uma pitangueira e uma amoreira carregadas de doces frutos tão ao alcance da mão que nem ginástica preciso fazer para me fartar. A quantidade é tamanha e todos os dias nova carga amadurece a ponto de muitas caírem ao solo e nos galhos ainda ficarem dezenas, à espera dos pássaros, de quem queira se servir em abundância; as palmas, os dedos, os lábios chegam a ficar tingidos, purpura-alaranjados; acreditem, até a Antonella, simpática cadela do vizinho, delicia-se comendo amoras! As duas frutinhas com sabor de infância e de mato, entretanto, são sazonais, brotam em determinados períodos e, fora deste tempo, não costumam haver safras temporãs.

Com a música, entretanto,  a tendência é outra, sobretudo no segmento independente. Todo santo dia aflora um novo talento aqui e acolá, pitangas e amoras que muita gente ignora, acabam apodrecendo no galho ou, ainda verdes, derrubadas pelo vento ou pela chuva rolam pela sarjeta sem jamais terem sua docilidade apreciada, uma pena!

Mauri de Noronha é um destes artistas que convidam a gente a colher suas canções pitangueiras e a se manchar com suas poesias amoras. Natural de Garanhuns (PE), atualmente residindo em Aracaju (SE), ao lado do flautista Chico Pedro, do Raíces de America, Mauri de Noronha lançou no Espaço da Rosa Latino Americana (ERLA) na noite de sábado, 3 de outubro, De repente, um cantador, um  álbum acústico simples e marcante, composto de 22 faixas que têm acompanhamento apenas do seu violão, das flautas e da gaita colombiana de Chico Pedro — instrumento muito utilizado para cúmbias.

Além de composições próprias, Mauri de Noronha também declama poemas que ele próprio assina com temáticas que transitam entre o Sertão e o mar, ilustram a beleza de ambos e conjugam como ponto forte o retrato sem pinceladas cosméticas das agruras, sofrimentos e aflições, as preces e as esperanças de um povo cuja pele o forte sol greta, o patrão, a polícia e o proselitista exploram e a estiagem espanta e mata sem poupar planta ou bicho – fatores geopolíticos que explicam uma realidade que não deveria ser aceita como calvinista, posto que é obra do descaso; ou sina do agreste e de seus homens, como dito em Assim se Assucede (#16).

mauri e chico

Ao cantar ou declamar suas obras relacionadas ao sertão e aos dramas que os seus conterrâneos amargam, o conterráqueo Mauri de Noronha evoca com a mesma grandiosidade Elomar Figueira de Mello ou Vital Farias, tanto ao pontear, quanto ao declamar. Apresentando-se como um “ser de todo mundo” (“meu mundo não tem cercas: a minha terra é o teu planeta/ eu sou de todo canto […] a tradução de toda língua está no beijo/eu sei que sou de qualquer raça: sou sertanejo/os donos das fronteiras tantas são traiçoeiros/ e eu canto a rebeldia plena… pelos herdeiros!), Mauri de Noronha incorpora com paixão sem panfletarismo ou pieguice voz que protesta contra e denuncia o maltrato histórico contra sua gente; embora executadas com sensibilidade ainda que em um tom veemente, as canções deixam, então, de serem pitangas ou amoras: ficam mais para espinhos de cactus cujas pontas precisam arranhar muita pele de pêssego que insiste em não entender que o sertanejo, antes de tudo, sim, é um forte, mas tão ou mais vulnerável que o solo quando ora por chuva e que pobreza nos grotões ainda está longe de ser mera grife para inspiração de versejadores de feira e literatura de panfleto.

“A apresentação que faço com o Chico Pedro é acústica, a flauta acrescenta roupagem ilustre ao que e à forma que eu canto”, observou Mauri de Noronha. “Sou uma espécie de menestrel, embora o formato de meu violão não corresponda tanto àquele da Idade Média, quando os violeiros destacavam-se mais pela técnica”, prosseguiu. “Eu toco meu instrumento pela alma, sou mais cantador do que repentista”, explicou. “Adoro o repentismo e o modo de cantar de improviso, mas como dizem lá no Nordeste: sou poeta de caneta, ou seja, escrevo meus poemas e os coloco dentro de um contexto”.

E o contexto é, ainda, de resistência, de resiliência, de quem empunha armas contra o conformismo. O próprio espaço utilizado para o lançamento de De repente, um cantador, carrega a simbologia da bravura que permeia a anima do álbum. O Espaço da Rosa Latino Americano fica na rua Santo Antônio, no bairro paulistano Bixiga, e é um centro cultural e de estudos cuja referência é Rosa de Luxemburgo, filósofa e economista marxista, nascida na Polônia (1871) e que morreu na Alemanha (1919). Rosa de Luxemburgo tornou-se mundialmente conhecida pela militância revolucionária ligada à Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia (SDKP), ao Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) e ao Partido Social-Democrata Independente da Alemanha (USPD). Participou da fundação do grupo de tendência marxista do SPD, que viria a se tornar mais tarde o Partido Comunista da Alemanha (KPD); seu nome em polaco é Róża Luksemburg e em alemão Rosa Luxemburg.

santiago

mauri e rhyfer

A casa situada no emblemático bairro é ponto de encontro de entidades dos movimentos e de artistas de orientação à esquerda e de causas humanitárias; nas paredes exibe desenhos e cartazes por um mundo mais fraterno e que evocam a memória de artistas como os chilenos Victor Jara e Violeta Parra e de Leila Khaled, militante da Frente Popular para a Libertação da Palestina que se tornou famosa na década dos anos 1970 por ser uma das poucas mulheres árabes envolvidas em atividades de guerrilha, atualmente membro do Conselho Nacional Palestino.

Neste ambiente convidativo às lutas, Mauri de Noronha abriu o microfone para o parceiro e poeta Santiago Dias (autor juntamente com Emanoel de Almeida de João Sem Quase Nada, #18) declamar Fatiando a Lua e para o conterrâneo de Paulista (PE) radicado em São Paulo Rhayfer Ferreira cantar as canções Aonde Deus Possa me Ouvir, de Vander Lee; Tocando em Frente, de Almir Sater e Renato Teixeira, com acompanhamento de Mauri; e Pega-Pega, de Rhayfer e de Adroaldo Leide.

Raíces comemora 35 anos no Rio

O flautista Chico Pedro estará com o Raíces de América no Rio de Janeiro no próximo dia 13, quando o grupo será atração a partir das 19 horas da estreia de Sons Hermanos, projeto promovido pelo Sesc Ginástico. O repertório levará ao carioca o repertório de clássicos latinos e composições próprias com ritmos como cúmbia, salsas, boleros, milongas, merengues e MPB; o show também será momento de celebrar 35 Anos de Raíces e durante sua realização os nove músicos tocarão mais de 30 instrumentos.

O Sesc Ginástico fica na Avenida Graça Aranha, 187, Centro do Rio de Janeiro. O telefone para mais informações e reserva de ingresso é (21) 2220-8394. A classificação etária é 12 anos e na bilheteria a entrada custará R$ 20,00.

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