Fabrício Conde gosta de contar entre uma música e outra um “causo” que deixa a plateia arrepiada. Ele mesmo fica assustado e não toca a “sinistra” composição (e curioso: ninguém a pede, ao contrário!) que menciona nesta história, a qual aprendeu com uma anciã, Dona Alzira — moradora de retirada casinha situada em São Francisco (MG), cidade às margens do Velho Chico –, pois jura: não mexe com nada do outro mundo. Mas embora conte que procede de Juiz de Fora, cidade terrena da Zona da Mata mineira, o próprio não parece ser deste plano, não, vai ouvindo: com apenas as duas mãos, Fabrício Conde tira dos “instrumentos” sonoridades de outros mundos!
Tamborilando no tampo “delas” ou passeando com os dedos entre as cordas e o braço da caipirinha, uma delas feita de cabaça pelo luthier Levi Ramiro (e ainda sem relar sequer em um arame, só aproveitando a reverberação), em seus concertos visita terreiros africanos e, na nota seguinte, já está dando olé em praças de touros de Madri, arrancando palmas de Paco de Lucia. Mais adiante sobrevoa os Andes, pousa em Corrientes para tomar um mate e oferece aos hóspedes um chamamé… ou chacarera, dependendo do local. Depois de uma escala no Rio de Janeiro — onde bota as mulatas para requebrar –, de volta a Minas Gerais ilustra como ilustre caipira que é como são as tardes e as festas de São João em Chácara e nos arredores daquele rincão. Para quem pensa que a viagem pára ai, não desça do trem: afinal, Fabrício Conde é múltiplo, uai, está só começando o rolê que ainda vai repentear em Caruaru e no final terminar em cateretê. E tudo isso o tempo todo… sorrindo!
Quando não apenas toca, Fabrício Conde toca e canta. E se não canta, nem toca, conta. E não importa: dos três jeitos, com seu trejeito tipicamente mineiro, encanta. Como um menino, talvez o Carquinho que ainda carregue no íntimo, brinca com o público pedindo que no recortado da viola quem escuta devolva (sem errar) o verso; quem consegue e não se perde no reverso do rastro do gato e nem tropeça no caminho do pato ganha um exemplar de Fronteira, disco mais recente e do qual apresentou faixas na noite de quarta-feira, 28 de outubro, no Sesc Pinheiros, palco de mais uma rodada da Série Erudita Viola em Concerto, projeto mensal que tem a curadoria de Ivan Vilela.
Fabrício Conde, naquela noite, acabara de chegar de turnê na Argentina. Como foi recente o desembarque, ainda trazia no bojo das violas recuerdos do que ouvira e colhera por Rosario, por Santa Fé, por Tucumán e assim, inspirado, utilizou as violas (para além do típico instrumento caipira que parecem ser) também como charango, cuatro, bumbo – marca registrada do moço que ainda é escritor, moleza para quem já teve composições tocadas na BBC de Londres e que chegaram aos ouvidos de uma tal de …Elizabeth II.
Em Sampa, estava só no palco, é verdade. Porém, as manhas que tem para proceder esta mágica é tamanha que, possivelmente, Dona Alzira e Sêo Antônio Macário ensinaram algo mais ao pupilo – de Ivan Vilela conta que aprendeu apenas “o silêncio entre as notas”. Quando ele toca, inclusive, até parece que estão em execução mais do que uma viola. Em determinados momentos, por sinal, teve gente intrigada com este “eco”, esticando o olhar para além do músico como se atrás dele existisse algo mais ou alguém que explicasse de onde viria o soar das “outras violas” que pareciam acompanhá-lo. Entretanto, não, não havia ninguém escondido, não era play back ou engenhoca, não havia artifícios que esclareçam tal efeito. Fabrício Conde, como observamos, é múltiplo, mas é único. Quem sabe as sombras dele projetadas ao fundo do palco não expliquem por que quem comprou ingresso para curtir um concerto solo ouviu simultaneamente três?
A apresentação de Fabrício Conde foi procedida pela A difusão das violas no Brasil — do século XVI ao início do século XIX, que abordou uma visão das informações conhecidas sobre a produção e circulação dos instrumentos de cordas pulsadas no território brasileiro até a Independência, em 1822, destacando os tipos e funções das violas em uso nesse período. Paulo Castagna é graduado e mestre pela Escola de Comunicações e Artes e doutor pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Atua como professor e pesquisador do Instituto de Artes da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) desde 1994 (graduação e pós-graduação) e Bolsista Produtividade do CNPq para o período 2013-2015, produzindo partituras, livros, artigos, cursos, conferências, programas de rádio e televisão na área de musicologia, e também coordenando pesquisas para a gravação de discos. Participa de encontros de musicologia na América Latina, Europa e Estados Unidos, tendo coordenado alguns deles no Brasil.

Ilustração de Gonzalo Cárcamo (Los Angeles, Chile) para o livro de Ricardo Viveiros O Menino que lia nuvens, lançado em 2014 pela Editora Gaivota
Carquinho
Fabrício Conde também é escritor, autor dos livros Causos, histórias e um pouco mais… e O Caminho das Asas, este segundo selecionado para a feira literária de Bologna, Itália. Dirigiu vários espetáculos teatrais e compôs a trilha sonora do filme Dulia, uma de suas composições em que se sente tocando piano ao executá-la, já que concebeu a peça neste instrumento.
“Tenho grande admiração pelo sertanejo, respeito que eu adquiri com minha avó”, conta Fabrício. Antônio Macário é uma das pessoas que também o influenciaram e que ele reverencia em Âncora, um primoroso DVD do qual o Barulho d’água Música recebeu um exemplar, junto com os álbuns Fronteira e Fabrício Conde.
“Minhas influências, de maneira geral, encontram-se em Galeano [Eduardo Galeano], Borges, [Jorge Luis Borges], Guimarães [Guimarães Rosa] e Manoel de Barros. Também tenho mestres com os quais convivi, mas destaco como um dos mais decisivos em minha formação Ivan Vilela”.
Abaixo uma crônica do primeiro livro de Fabrício Conde que ele recitou entre as músicas que tocou em São Paulo nesta mais recente apresentação:
Tenho por preferência reparar passarinhos. As flores também me dizem e em verdade floresço: tudo que é feito de céu, verde e silêncio, me abraça – transforma. Também sou feito de admirar vento: suas rotas e encomendas de trazer perfumes, poeira e chuva.
Gostava de inventar que me chamava Carquinho quando criança. Meu nome verdadeiro, Fabrício, era coisa de meus pais Nisto, me dividia em dois. Um que eu era, outro que suspeitava ser. Pelos dias de minha infância fui crescendo, Carquinho por dentro e Fabrício por fora.
Tive roupas brancas de ir à escola, destas com professores e merenda dentro. Por diversas vezes usei de imaginar para aprender. Aprendi.
Uma vez ouvi dizer que as nuvens são infinitas. Engenhoso, fiquei numa manhã contando quantas nuvens atravessariam o céu de minha rua. Foram poucas, foram oito. Então conclui que o infinito é um número oito que cabe dentro de uma manhã e passa por cima da casa da gente.
Realidade é aquilo que eu invento. Pra saber basta imaginar que o resto se ajeita com o tempo.
E o que resta para um menino que cresceu à beira de um riacho vagabundo? Eu respondo,
o mundo! Resta o mundo. E se um mundo for pouco, invento outro mundo. Um para ser noite, um para nascer dia. Para esconder um dentro do outro. Pra ficar de reserva caso o primeiro mundo fure. Para ser feliz duas vezes.
Foi Carquinho quem de mim campeou o mundo em rios e histórias pelos descaminhos da roça ao verbo.
E foi nessa bola azul desajeitada em mundo que alinhavei o meu destino em preto e branco com versos de viola. Navegando avessos. Indo além.