827 – Elza Soares não foge às lutas pela afirmação feminina e jamais fez concessões para construir a carreira de “Rainha do Samba”

Em matéria da revista Capitolina assinada em dezembro de 2015 , a jornalista  Aria Rita relembra  a indicação de Elza Soares pela emblemática BBC de Londres como “a melhor cantora do milênio”,  considerada “uma mistura explosiva de Tina Turner e Celia Cruz” pela Time Out, e conhecida no mundo todo como “A Rainha do Samba” A data deste significativo voto pelas pesquisas do Barulho d’água Música teria ocorrido em 2.000, mas independentemente da época na qual foi dado, eis um título que tende a jamais perecer e que, com certeza, amigos e seguidores da obra de Elza Soares ratificariam sempre que fossem chamados a opinar.

O blogue, então, resolveu também homenagear Elza Soares como personagem para esta atualização dedicada ao Dia Internacional da Mulher. E não apenas pelas suas inquestionáveis qualidades técnicas ao cantar e interpretar, mas ainda pelo perfil de guerreira, de mulher oriunda de favela que se tornou militante feminista e de causas como a do combate ao abominável preconceito contra a cor da pele, sempre lutando para se afirmar como artista negra, e, em ambas as frentes, avessa às badalações, como descreve Aria Rita, autora do texto que nos serviu de guia.      

De saída, muita gente já associa Elza Soares a Garrincha. Mas o famoso gênio entortador de zagueiros joões não foi o primeiro companheiro dela. Elza Soares casou pela primeira vez aos 12 anos, obrigada pelo pai, o violonista Gomes Soares, com Lourdes Antônio Soares, conhecido como Alaúrdes, com o qual teve o primeiro filho, ainda aos 13 anos de idade. Antes de contrair este matrimônio, Elza Soares, nascida em 23 de junho de 1930 (segundo algumas fontes, ou na mesma data, em 1937, para outras) na favela da Moça Bonita, em Padre Miguel (hoje Vila Vintém), vivia em Água Santa e tinha entre os hábitos da infância brincar na rua, soltar pipa, piões de madeira, e até brigava com meninos. Aos 21, tão precoce quanto o casamento, conheceu a viuvez, causada pela morte, por tuberculose, de Alaúrdes. Tinha cinco filhos para criar, mas seguiu a determinação de ser cantora, estrada que começará a trilhar ainda aos 13: ao precisar comprar remédios para o primeiro rebento, recém-nascido,  encarou o programa de Ary Barroso, da Rádio Tupi. 

Sensação internacional que aos 30 já cativara o público por sempre ocupar o palco desfraldando um belo sorriso enquanto exalta sua alegria por meio do samba e outros ritmos populares, Elza Soares, é, portanto, também exemplo de superação diante de uma trajetória pessoal em que parece não ter conhecido tréguas e que a fez pelejar com inúmeras dificuldades, conforme Aria Rita demonstrará. Garrincha entrou na vida dela aos 32 anos e , então, Elza Soares padeceu horrores para consumar a ligação com ele, já  nosso craque era homem casado que viria a se separar para assumir o relacionamento dos dois.  A hipocrisia da sociedade manifestou-se tanto com xingamentos, quanto por ameaças de morte, além de hostilidades como ver a casa alvejada por ovos e tomates, acusada pelo falso moralismo ainda hoje reinante de que seria  mulher que acabou o com o casamento de um homem.

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Fotos acima e abaixo disponíveis na internet, sem atribuição do crédito ao autor. 

Nada é doce e suave quando se trata de Elza Soares, ressaltara a autora da matéria da Capitolina. Desde sua expressão dura, emoldurada por seu afro volumoso coroado com flores ou um turbante, até sua voz metálica, suas feições felinas, seu sorriso largo e rasgado, sobrancelhas desenhadas altas e arqueadas, e sua eloquência curta e grossa, aquilo que Elza Soares transmite mais que tudo, é força.  Perto de chegar aos 90 anos se considerada a primeira data atribuída ao seu nascimento, com mais de 60 de carreira musical, sua malemolência de sambista que também é referência da bossa nova e do hip-hop vem alegrando e inspirando três gerações.

“Elza Soares é um clássico, e não apenas um daqueles clássicos antigos, que fez músicas geniais e se aposentou, ficando preso no passado”, apontou a jornalista. “Ela é um clássico que provou que enquanto estiver viva continuará se adaptando às novas gerações e aos novos mundos, sempre dando um jeitinho de adaptar seu talento”.

 Em outubro de 2015, Elza Soares surpreendeu mais uma vez os fãs já acostumados a ouvir sua voz entre os batuques e aranhas do samba de raiz e da bossa tradicional. Naquele mês lançou um álbum inteiramente composto por músicas próprias e inéditas, depois de sua longa discografia recheada de interpretações de clássicos muito bem conhecidos pelo Brasil. As onze faixas de A Mulher do Fim do Mundo tratam de temas como a violência contra a mulher, negritude, morte, e sexo e algumas Aria Rita descreveu e comentou.
 
Abrindo o álbum, ouve-se Coração do Mar, poema de Oswald de Andrade cantado acapella que qual traça um ode a uma terra imaginária. Conforme a voz de Elza Soares desaparece, surge um quarteto de cordas anunciando a próxima faixa, e talvez a mais bela do álbum, que rendeu seu título. Em contraponto às cordas, aparece a percussão típica do samba, acompanhada da voz ríspida que entoa “Meu choro não é nada além de Carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés”.

A redatora da revista Capitolina destacou que o disco e várias letras do novo álbum de Elza Soares veem marcados por “empoderamento” misturado a qualidades como deboche como nota-se em versos de  Amor com pancada não existe no qual ela afirma “mulher só deve gritar quando for de prazer”. E como coisa do destino, ressalta a autora do texto, o álbum saiu três semanas antes da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), cuja redação teve por tema justamente a violência contra a mulher.

Em duas faixas agressivas e pós-apocalípticas, Luz Vermelha e Pra Fuder, pinta-se um descrição do Rio de Janeiro após o fim do mundo é surgem referências a uma experiência sexual em que Elza Soares se sente como uma espécie de entidade nativa do fogo. Em entrevista para O Globo, ela disse “a mulher do fim do mundo é a que vai ficar. O fim do mundo é a eternidade. Sou espírita, dentro do espiritismo existe uma entidade que se chama Iansã. Ela é o fogo, a lava. Eu me vejo como essa entidade maravilhosa se incendiando, mas viva, viva eternamente”. Para a TV Carta, em outro momento, completou: “Pra Fuder não é só sobre cama, não. É a mulher que bota pra fuder, de verdade”.

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Mas talvez a faixa mais agressiva do álbum seja a que transparece a realidade violenta que travestis enfrentam no Brasil, na qual dá para sentir a adrenalina da perseguição policial às pessoas que traficam ou se prostituem. Ao longo da música, fica claro o porquê de Elza Soares ter inserido essa faixa no repertório: ela se enxerga na travesti Benedita – violentada, injustiçada, forte, persistente e guerreira. Benedita é “mulher do fim do mundo” como a própria Elza Soares. E Elza Soares não simplesmente largou essa faixa e saiu correndo: em entrevistas sobre o álbum, quando questionada, a cantora não deixa de falar sobre a situação da comunidade trans — Aria Rita, travesti e transfeminista, neste ponto, insere sua própria condição na matéria e se demonstra representada. “A mulher não tomou ainda o conhecimento que uma mulher ajuda a outra, que a gente precisa ter mulheres do nosso lado. Precisamos de amigas.”

Se o álbum começa com duas músicas belíssimas, termina com três faixas tão belas quanto, opina Aria Rita. A instrumentação de O Canal tem forte influência da música africana, que acompanha o tema da letra: uma jornada espiritual. Solto é a única faixa sem distorções, fora o prelúdio acapella do álbum, Coração do Mar. Descreve o processo de morrer: a alma se desprendendo do corpo. E, finalmente, Comigo começa com crescentes ruídos e distorções, construindo a tensão do ouvinte. Ao chegar à metade da faixa, o ruído, de repente, cessa, e a voz de Elza Soares surge novamente num acapella singelo:

“Levo minha mãe comigo
Embora já se tenha ido
Levo minha mãe comigo
Talvez por sermos tão parecidos
Levo minha mãe comigo
De um modo que não sei dizer
Levo minha mãe comigo
Pois deu-me seu próprio ser”

(A mãe de Elza Soares, Rosária Maria Gomes, morreu vítima de acidente de carro em que Garrincha, Elza e a filha pequena do casal Sara saíram apenas feridos. Garrincha dirigia pela Rodovia Presidente Dutra quando foi fechado por um caminhão que entrava em baixa velocidade na pista, conforme descreve a Wikipédia). 

O novo álbum de Elza Soares, prossegue Aria Rita, é fogo, é melancolia, é sofrimento e é liberdade, como há de ser o samba, como é Elza Soares, e como é a mulher brasileira. Empodera, toca na ferida, é aquele tapa na cara que dói, mas nos faz acordar. Trata de racismo, de misoginia, de transfobia. A voz de Elza Soares está rouca, rasgada, e sempre prestes a falhar, e exatamente por isso, mais bela do que nunca. É uma cicatriz que mostra a força que ela precisou pra enfrentar o que enfrentou, e é bela, como as marcas da idade no seu rosto.

“Boto o passado todo num cantinho, guardadinho em mim, mas sabendo que o now está aqui. Ontem já foi, amanhã não sei. Então, tem que ser agora”, diz a cantora, descrita pela jornalista como alguém que traz “o olhar misterioso de Capitu, a casca grossa de Maria da Penha, o sorriso alegre de Carmen Miranda, o braço forte de Dandara, tudo junto. É daquelas mulheres que fazem História pra lembrar às mulheres do Brasil que esse país é nosso”. 

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