Desde a mudança da redação do Solar da Lageado, em Sampa, para o Parque Miraflores, em Itapevi, a maior parte dos álbuns do acervo de discos do Barulho d’água Música estava encaixotada pela falta de espaço. Com a chegada a São Roque, enfim, começamos a organizá-los e a fazer um inventário: colocamos todos no piso da sala e assim acabamos encontrando — mais do que uma tarefa burocrática — perolas que nem mais nos lembrávamos que existiam no baú do tesouro. Resolvemos que poríamos alguns para tocar (antes de prosseguir fique publicamente registrado: o primeiro a ser tocado na nova residência foi Casa, por muitas e simbólicas razões além do nosso amor e admiração por Consuelo de Paula!), escolhendo, em ordem alfabética, pelo menos um de cada cantor, dupla ou grupo brasileiros. O mais lógico éramos seguir o sentido A-Z, mas invertemos a mão, pois no final da fila se destacavam dois instrumentais raros, de um autor dos mais criativos que a nossa música de qualidade independente já teve: o compositor, arranjador, luthier, maestro e pesquisador gaúcho José Bonifácio Kruel Gomes, internacionalmente conhecido por Zé Gomes.
Zé Gomes, considerado até hoje, oito anos após o infarto que o levou ao andar de cima, em junho de 2009, acumulava títulos tais quais um dos maiores intérpretes de Villa-Lobos (também tirava sem arranhar ou desafinar Bach, Stravinsky, Mozart, Paganini) cuja obra estudou profundamente. Nativo de Ijuí, Zé Gomes dedicou-se, ainda, ao estudo da rabeca e da viola de cocho, entre outros instrumentos com os quais tinha estreita intimidade. Além de Palavras Querem Dizer e Idade dos Homens, os dois dele que temos aqui, a discografia completa-se com Tempos Interiores (que não teve distribuição comercial) e Rabecas, em duo com o também rabequeiro Thomas Rohrer. Palavras…, o puxa-fila, saiu quando Zé Gomes já havia ultrapassado a casa dos 60 anos; A Idade dos Homens em parceria com o filho, André. Engana-se, entretanto, quem pensa que o maestro fosse avesso aos estúdios ou aos palcos, pois se a obra autoral é exígua diante de tamanha genialidade, Zé Gomes já se dedicava profissionalmente à música desde os 14 anos, três antes de a família trocar o Interior por Porto Alegre.
Na Capital, o então rapaz ingressou no grupo Tropeiros da Tradição, com Paixão Cortes, formação que serviu de parâmetro para todos os conjuntos que os sucederam. Durante a década dos anos 1950, fez parte d’Os Gaudérios, com o qual empreendeu a primeira viagem ao Exterior para participar (e sair vencedor) do Festival Internacional de Folclore, promovido pela Universidade Sorbonne. Em 1955, trabalhou com João Gilberto e Luis Bonfá, compositor da música do filme Orfeu no Carnaval, que já antecipava elementos da Bossa Nova. Em 1958, criou o curso de violão José Gomes, com turmas que somaram mais de 1.500 alunos em uma década de funcionamento. Paralelamente às aulas, ministrava palestras em seminários culturais ou integrava a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA).
Professor Zé
Em 1966, Zé Gomes fundou, com Bruno Kieffer e Armando Albuquerque, o Seminário Livre de Música (Selim), que dois anos depois passou a ser o Centro Livre de Cultura. Em 1969, por concurso público, assumiu uma cátedra na Escola de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
De 1968 a 1971, como arranjador, participou de vários festivais. Já radicado em São Paulo, seguiu lecionando e compondo trilhas tanto para teatro, quanto para cinema, fábulas infantis, quartetos, trios e duos instrumentais, além de corais, assinando peças para viola e rabeca (instrumento que, mais tarde, viria, também, a construir; criou inúmeros projetos de artesanato e de fabricação de instrumentos musicais tais como rabeca acústica, chorongo ou baixo acústico, calimba cromática, violino mudo) e música sacra.
As parcerias de Zé Gomes somam mais de 200 gravações com astros como Chico Buarque, Heraldo do Monte, Arthur Moreira Lima, Diana Pequeno, Tarancón, Renato Teixeira, Elomar, Pena Branca e Xavantinho, Paulinho Pedra Azul, Marlui Miranda, Alzira Espíndola e João do Valle, entre muitos outros. Com Almir Sater, Geraldo Espíndola e Paulo Simões, viajou a cavalo mais de 1.000 quilômetros pelo Pantanal a convite da Funarte, que planejava rodar filme sobre o homem pantaneiro e pesquisar a música da região. O quarteto ficou conhecido como Comitiva Esperança, denominação que também batiza a canção de Sater e Simões que integrou a trilha sonora da novela Pantanal, de Benedito Ruy Barbosa, levada ao ar pela extinta TV Manchete no início da década de 1990, na qual Sater e Sérgio Reis atuaram como atores. A amizade de Zé Gomes e as apresentações com Almir duraram 20 anos até a última vez: um concorrido show promovido em Porto Alegre, com Zé Gomes ao violino, pelo Projeto Acorde Brasil, no Sesc.
Zé Gomes ainda estava vivo quando o professor, músico e advogado cuiabano Ney Arruda escreveu para o Diário de Cuiabá o artigo abaixo, que reproduzimos na íntegra:
Rabequeiro tem bela contribuição para com a música brasileira de raiz folclórica
Certa vez, a convite de um amigo, permaneci em Curitiba (PR) após o Festival Nacional de Música Erudita da Oficina do Barão. Avancei um pouco mais e busquei contato com a fase popular do festival curitibano de música. Lá tive contato com o professor José Eduardo Gramani, da Unicamp [Universidade de Campinas, São Paulo]. Ele me ensinou a gostar da rabeca. Foi amor à primeira vista. Esse instrumento de origem árabe é como se fosse um violino rústico. A rabeca não conta com o sofisticado método de construção empregado pelo luthier. Isto é, os artesãos que mantém a técnica de confecção desde Nicola Amati, mestre de Antonio Stradivari do século XVIII. Mas o assunto hoje é rabeca. Ela é forte no litoral nordestino, interior de MG e chegou ao Sul do país. Parece haver uma ligação dos primeiros grupamentos musicais vindos com o agente colonizador lusitano, holandês e francês e o caboclo colonial. É provável que este tenha feito a sua versão do violino europeu na rabeca para tocar em prol de seu próprio deleite, nas festas pagãs e religiosas. Um dos maiores rabequeiros do país na atualidade se chama José Bonifácio Kruel Gomes (Ijuí, 1935– ). De forma mais simples, o nosso Zé Gomes contribui com a música brasileira de raiz folclórica desde os seus 17 anos de idade. Ele começou a vida como violinista clássico e chegou de tocar com a OSPA – Orquestra Sinfônica de Porto Alegre.
Nos anos 50, Zé Gomes atuou com o lendário grupo de música folclórica, nativista e gaúcha “Os Galdérios”. Gravaram discos de 78 rotações e em 1958 participaram do Festival Internacional de Folclore, na França. Talvez haja dúvida de quem seja este inegável personagem da música brasileira. Ele ajudou a notabilizar gente consagrada como os violeiros Almir Sater e Renato Teixeira. Mais recentemente atuou em performances musicais com o violonista Yamandu Costa. Com Almir, Zé Gomes tocou [por] 20 anos. Sua marca está em quase toda a trajetória fonográfica daquele instrumentista tão querido pelos mato-grossenses. Há algumas semanas fiz contato o Zé. E qual não foi minha surpresa quando recebi quatro CDs de sua profícua arte musical. Destaque para o trabalho: Palavras querem dizer, outrora distribuído pelo selo Kuarup. Nesse CD Zé Gomes presta um tributo à viola de cocho. Ela aparece na interpretação do artista que além da rabeca, violino, violão também gravou obras com a viola de cocho. Nesse CD podemos encontrar toadas, hinos mineiros, música nativista gaúcha, milongas, chamamés e leituras prodigiosas do estilo de nosso rasqueado cuiabano.
Em 1983, Zé Gomes integrou a Comitiva Esperança junto com Almir Sater. Este foi um projeto da Funarte para pesquisar a música pantaneira. Daí o contato com a viola de cocho. Na década dos anos 1960, Zé foi cofundador de uma escola, o Centro Livre de Cultura que aliou a música à filosofia. A inovação foi duramente perseguida pela Ditadura Militar. Nos anos 1970, o genial rabequeiro trabalhou como orquestrador e regente da TVs Record e Tupi. Outro trabalho de gravação interessante de Zé Gomes é o CD A Idade dos Homens. Nele quem gosta de boa música vai encontrar de instrumentos de percussão indianos até a famosa cítara tão divulgada pelo instrumentista Ravi Shankar. No CD Rabecas vão encontrar o delicioso diálogo entre Zé Gomes e outro rabequeiro, Thomas Rohrer. Uma espécie de desafio surge na faixa Lampião fazia Guerra. Na faixa Reunião de Cúpula, a rabeca dialoga alegremente com a viola de cocho. É uma beleza de encontro musical com um cachorrinho latindo ao fundo. A cena musical retrata coisa de fazenda no pantanal. Pena que a rabeca não faça parte das tradições musicais de nossa terra de forma tão expressiva.

Almir Sater, um dos mais conceituados violeiros do Brasil, tocou com Zé Gomes por duas décadas (Foto disponível na internet sem atribuição de crédito ao autor)
Certa vez, disseram que Stéphane Grappelli, o famoso instrumentista francês do jazz internacional, era um poeta do violino. Pois bem, o nosso Zé Gomes não deve nada a nenhum violinista do mundo. Dono de uma técnica autodidata, inventividade harmônica inesgotável e precioso dom melodista é o maestro dos pampas. No CD Tempos Interiores, Zé Gomes demonstra sua incrível capacidade de múltiplo instrumentista quando gravou suas obras tocando violino, violoncelo e viola de arco. Destaque para as faixas Encontro e Doma da rabeca de Zé Gomes e a viola caipira de Almir Sater. Elas são os nossos Grappelli e Django Reinhardt do Brasil 100% caipira. Sem dúvida, Almir e Zé representam um dos duos mais encantadores de toda a literatura musical brasileira sem contaminações do agente predador neo-colonial contido na música sem alma. Zé Gomes, hoje com 72 anos, disse em recente entrevista que está pensando o que fazer com toda música composta desde a década de 1970. Meu amigo, é o seguinte: organize sua preciosa produção musical em songbooks, porque as futuras gerações de músicos deste planeta merecem conhecer a sua maravilhosa herança musical. Acredito que as editoras vão fazer fila diante de sua porta para essa publicação. Esse é o caminho para perpetuar o que vale a pena.
Leia também sobre Zé Gomes a matéria de Joel Emídio da Silva em http://www.sertaopaulistano.com.br/2009/06/silencio-da-rabeca.html
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5 comentários sobre “1012- Título de melhor rabequeiro do Brasil é pouco para reconhecer a contribuição de Zé Gomes (RS) à música do país”