1044 – Morte de Índio Cachoeira silencia os ponteios de um mestre que fugia de casa para ficar perto das violas

Músico querido por ex-alunos e ex-parceiros não resistiu às sequelas de um acidente de trânsito que sofreu em Alfenas (MG), onde o corpo foi sepultado após homenagens de entidades locais e da Prefeitura 

Marcelino Lima, com o blogue Brasil Festeiro, Primeira Página (São Carlos), Cidade Escola Alfenas e Graciela Binaghi

 

O universo da viola caipira mineiro, paulista e nacional está de luto, dos mais sentidos, desde quarta-feira, 4 de abril, quando — conforme costuma dizer Rolando Boldrin em momentos tristes como estes – bem antes do combinado foi se embora para outro Plano José Pereira de Souza, com apenas 65 anos! Pelo nome de pia, talvez o conheciam apenas os mais chegados, familiares e amigos que juntou enquanto esteve entre nós. O nome artístico, entretanto, o levou à fama que apenas poucos Josés conseguem alcançar — ainda mais no boicotado meio em que resolveu nos brindar com seu talento e virtuosismo. Estamos falando de Índio Cachoeira, agora mais uma estrela na constelação na qual já brilham, ora, sim senhor, Tião Carreiro, Gedeão da Viola, Angelino de Oliveira, Raul Torres, Renato Andrade, José Fortuna, Helena Meirelles, se não todos violeiros, com certeza ícones de tradições e de uma cultura que formam o perfil brasileiro; se fossemos fazer uma comparação com ídolos do círculo dos mais cotados da MPB ou de outras vertentes brasileiras, Índio Cachoeira seria, por exemplo, um artista da primeira linha, não menos que João Gilberto, Toquinho ou Guinga.

Correntes de orações pela recuperação de Índio Cachoeira não faltaram, mas as sequelas do acidente de trânsito que o vitimara uma semana antes o tiraram de combate, após o período internado na UTI do Hospital Universitário Alzira Velano, situado em Alfenas (MG). O violeiro teve traumatismo craniano, passou por cirurgia, foi colocado em coma induzido, entretanto terminou expirando devido a complicações do procedimento operatório. Consta, ainda, que sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) enquanto os médicos lutavam para trazê-lo de volta à vida. Confirmado o óbito, a família autorizou a doação de órgãos antes do velório que lotou o Centro Municipal de Música Professora Walda Tiso Veiga e do sepultamento, em Alfenas.

José Pereira de Souza nasceu no dia 27 de junho de 1952, em Junqueirópolis, cidade que fica entre São Paulo e Mato Grosso do Sul e morava há 15 anos em Alfenas, ao lado da filha, Camila, e irmãos, depois de trabalhar em Guarulhos (SP) com o motorista de ônibus. Fontes que trazem dados sobre sua biografia revelam que ele, já aos oito anos, tinha contato com a viola ouvindo antigos violeiros da região, mas como a mãe o proibia de frequentar as rodas e Folias de Reis, o garoto fugia de casa para ouvir de perto os ponteados. Apesar destes contratempos, não demorou muito para que sua vontade fosse vencedora, pois, aos 17 anos, estava na estrada e dera largada à trajetória tocando em emissoras de rádio já com o nome de Índio Cachoeira.

O nome artístico que carregou desde pequeno provinha dos bisavós e dos  avós, membros da etnia Pataxós, da Bahia. A comunidade na qual veio ao mundo, por sinal, era terra de índios que terminaram expulsos da região, pela colonização dos brancos em uma época na qual os pais, lavradores, trabalhavam de sol a sol para manter a família. De lá, o menino rumou com a família até Marília, há 180 km de distância, onde também tinha parentes. Por lá ficaram até que, cansados do trabalho no campo, os pais decidiram mudar para São Paulo.

A primeira dupla foi com Tião do Gado, o Carreiro da dupla Carreiro e Carreirinho. Em 1995, tornou-se o Pajé da tradicional dupla com Cacique, saindo depois de cinco anos e cinco álbuns gravados. Além de virtuoso na viola, Índio Cachoeira foi luthier de talento da própria marca, Canaã. Por conta deste ofício, construía as próprias violas de dez e de quinze cordas, além de cavaquinhos, rabecas, violões e harpas, sempre na oficina que mantinha em casa. Mas também deu duro em estúdios gravando, por exemplo, com Rodrigo Matos (um dos seus alunos mais ilustre), Ronaldo Viola e diversas duplas; eram tantas atividades que, ele dizia, nem se recordava de todas, nem conseguia contar os discos que gravou.

Santarém e Índio Cachoeira gravaram juntos o mais recente e premiado álbum que tem participação do mestre violeiro

O mais recente álbum, em parceria com Santarém, saiu em 2017. Ponteando Tradições, vencedor do prêmio ProAC de Culturas, traz um primoroso repertório de  composições próprias baseadas nos pagodes de viola, cururus, cateretês, modas de viola e clássicos do sertanejo raiz. Três anos antes, naquela ocasião com o também violeiro Ricardo Vignini, ganhara o Prêmio da Música Brasileira da Funarte com o disco Viola Caipira Duas Gerações.

Índio Cachoeira e Vignini, por sinal, tornaram-se companheiros quase inseparáveis nos últimos 15 anos e se encontravam não apenas em palcos e em estúdios (pelo selo Folguedo, de Vignini, Cachoeira teve três CDs solo instrumentais e um DVD gravados), mas também em cursos que promoviam para aprendizes de violeiros. Ambos realizaram dezenas de apresentações pelo Brasil e países europeus como a França e se atribui justamente a Vignini o retorno de Índio Cachoeira à carreira de musico, convencendo-o a deixar o trânsito das ruas e os maus humores que certamente encarava como motorista de busão.  

O Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) e a Prefeitura de Alfenas emitiram notas lamentando o passamento e prestando solidariedade à comunidade violeira e à família do músico assim que a morte foi confirmada. Outra homenagem foi dedicada pela Cidade Escola Alfenas, cujo linque do portal disponibilizamos e recomendamos que seja visitado para que se conheçam mais detalhes da vida e da obra de Índio Cachoeira. Em outro artigo, este publicado em 30 de julho de 2012 pelo jornal online Primeira Página, de São Carlos (SP) é possível saber curiosidades sobre o tempo em que ele dirigia ônibus coletivos em Guarulhos (SP) e informações a respeito do álbum de 15 faixas que  acabara de lançar, Violeiro Bugre, com 14 composições instrumentais e que ele presenteou ao blogue em 9 de julho de 2014 durante roda de violas no Sesc Campo Limpo da qual também tomaram parte Vignini, Levi Ramiro, Paulo Freire e Rodrigo Zanc

Ao jornalista que o entrevistou para o Primeira Página, Índio Cachoeira declarou:

“Não procuro imitar ninguém, e, sim, criar meu estilo. A música que faço é rural mesmo, meio indígena. Dentro de mim está um índio e é de lá que eu tiro este estilo. Junqueirópolis é um lugar onde sai até fogo de dentro das violas, os músicos parecem estar forjando a música na hora. Quem me ensinou a tocar foi minha loucura, me enfiei no meio dos violeiros para aprender. Chegava a esquecer de almoçar e de jantar, tudo por causa da viola. Desde os 8 anos eu ‘futuco’ por causa da viola.”

 

Para saber mais sobre Índio Cachoeira e as homenagens que ele recebeu:

https://www.jornalpp.com.br/sociais/coluna-sertaneja/item/16886-%C3%ADndio-cachoeira-explica-como-trocou-o-volante-pela-m%C3%BAsica

http://cidadescolaalfenas.blogspot.com.br/2017/06/cidade-escola-ate-breve-indio-cachoeira.html

“Recebo com o coração cheio de tristeza a notícia da morte do amigo e mestre Índio Cachoeira. Devo muito ao violeiro que sou hoje por tê-lo conhecido. Deixa uma linda obra graças ao empenho de meu amigo Ricardo Vignini, pois podia ter sido mais um motorista tocador de viola a morrer desconhecido. Guardarei pra sempre muitas boas lembranças em palco, em estúdio e em minha casa. Meu filho, Francisco, foi presenteado com uma viola que o Cachoeira fez pra ele; eu nem fiz a encomenda e o Cachoeira se recusou a cobrar por ela. Obrigado amigo, que esteja na paz.”

Zé Hélder, violeiro, parceiro de Vignini nos álbuns Moda de Rock-Viola Extrema e no grupo Matuto Moderno, de Pouso Alegre (MG)

“Um adeus ao Mestre!!!

Hoje perdermos um dos maiores violeiros de todos os tempos. Digo isso, não só pela precisão e qualidade de sua música, mas também pela nobreza com que ele tratava os outros violeiros e a sua profissão. Violeiro completo, pois gostava de tocar, gostava de ensinar e gostava de contar causos. Violeiro bom também tem de ter uma boa prosa. 
Normalmente um grande músico faz questão de deixar um discípulo para dar continuidade a sua música. O Índio deixou vários e a sua música está viva em cada um de nós. Se de fato temos um espaço guardado para depois que partimos desse mundo, desejo pra ele o melhor lugar possível, pois ele merece, por tudo que fez aqui. 
Um agradecimento especial ao violeiro Ricardo Vignini que fez com que a música do Índio pudesse ter ecoado pelos quatro cantos do país e um pouco mais além, fazendo com que tivéssemos o prazer de conhecer essa bela história.

Segue aqui um dos ensinamentos de nosso eterno Mestre:

‘Para quem quer fazer música, primeiro tem de observar a natureza, olhe o que a natureza tem pra oferecer que você consegue tirar um verso. O violeiro tem de ter um carinho com a viola como se fosse uma namorada, tem de tocar com jeito e capricho; a música natural não é maquinada: ela vem do coração e da mente. E nunca se esquecer de fazer uma prece para São Gonçalo pra música sair boa’.

Jean Carvalho de Oliveira, Jean da Viola, amigo do Espírito Santo

Dia triste, muito triste. Mas não tem nada a ver com Lula e nenhum dos outros artistas deste circo de horrores, togados, fardados ou engravatados que vemos por aí. Hoje minha tristeza, muito mais doída, é por um verdadeiro artista escondido nas dobras desse Brasil real sobre qual tanto se teoriza nessa rede, mas que poucos realmente conhecem a fundo. Um mestre num instrumento que vibra em harmônicos sutis a alma profunda do país, de Norte a Sul, em variadas formas, toques, afinações e estilos. A nossa amada e onipresente viola, dez cordas capazes de traduzir o sentimento de uma nação muito grande. uma nação sem porteiras e cheia delas onde reinam, abençoados por São Gonçalo, o padroeiro dos violeiros, grandes músicos admiráveis, como esse do qual falo. Meu xará José Pereira de Souza, o grande Índio Cachoeira. Hoje, meu amigo Ricardo Vignini, outro magnífico violeiro sem fronteiras, responsável por trazer a público e divulgar a bela obra do Cachoeira, e seu parceiro em grandes aventuras musicais, comunicou a morte do querido mestre de tanta gente por aí, uma alma musical e humana da melhor estirpe. Do tipo que estamos precisando demais não perder nesse país tão maltratado. Notícia triste de verdade. Mas, Cachoeira, certamente o pagode vai ferver lá no Céu hoje, com tantos craques violeiros – Bambico, Tião, Renato e muitos mais – que vão te receber com os instrumentos prontos pra fazer os anjos e os santos dançarem sob o comando do divino São Gonçalo do Amarante, amém. Agradeço pelo pouco contato que tive, num dos cursos que o Vignini e o Zé Helder deram junto com você, em São Paulo, porque realmente ali me senti sensibilizado em conhecer um pouco da sua generosa pessoa e do seu toque magistral e do seu trato carinhoso da viola, mãos suaves, precisas e preciosas. Descanse em paz, Índio Cachoeira, eu sei que sua obra ainda vai soar muito por esse Brasil que, tantas vezes, nem parece merecer seus grandes artistas. Mas que, no fundo, merece, porque não é, na verdade, esse que se vê por aí na mídia. É muito maior, mais simples, sensível e bonito. É o Brasil de Índio Cachoeira.

Juca Filho, Rio de Janeiro, ex-aluno de Índio Cachoeira, autor e ex roteirista da Rede Globo  

3 comentários sobre “1044 – Morte de Índio Cachoeira silencia os ponteios de um mestre que fugia de casa para ficar perto das violas

  1. Eu sou um eterno aprendiz de violeiro e um grande admirador da obra do Indo Cacheira.
    Lamento profundamente sua passagem para o encontro dos grande violeiros: Bambico e Renato Andrade. Sua obra fica com nós.

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