Ideia dos organizadores é mostrar: a cultura da violência contra a condição feminina é antiga e reproduzida inclusive em sucessos de ídolos populares como se posturas misóginas pudessem ser consideradas normais
Marcelino Lima
Um ditado árabe popular recomenda ao homem casado: “todo dia, ao chegar em casa, de uma surra em sua mulher: se você não souber porque está batendo, ela saberá porque está apanhando”. Pessoas de bem, naturalmente, devem refutar este conselho, e, talvez, até o condenem, aliviadas por se tratar de um hábito estranho à tradição brasileira, que ocorre longe do nosso paraíso tropical. Resiste em nosso inconsciente coletivo, entretanto, cultura semelhante e tão censurável quanto, mas que se apoia em códigos misóginos que não apenas a toleram, como a permitem e até a legitimariam. Em outras palavras: a violência contra a mulher entre os tupiniquins é fato antigo e corriqueiro e, embora até já existam leis rígidas e órgãos especializados que a denunciam e a combatam, a discriminação, a intimidação e o ataque à condição feminina está presente dentro dos lares, em ambientes de trabalho (por meio do assédio sexual e da desigualdade salarial, por exemplo), no meio acadêmico, nas ruas, metastaseado em todos os segmentos da vida em comum e termina por refletir em um campo no qual deveria prevalecer apenas a apologia ao belo: a arte, que, entre suas várias funções, estimula a percepção, a sensibilidade, a cognição, a expressão e a criatividade. Além disso, a arte tem função social, é capaz de reinserir pessoas na sociedade e de ampliar os horizontes de cidadãos marginalizados.
Algumas letras de música do cancioneiro nacional, entretanto, não apenas desrespeitam e deturpam estes conceitos: utilizam as canções como suporte para referendar a cultura de dominação do macho sobre a fêmea. É o que revela o Seminário Música: Uma construção gênero, que a Prefeitura de São Leopoldo, cidade gaúcha do Vale dos Sinos e da Região Metropolitana de Porto Alegre (RS), por meio da Secretaria de Políticas Para Mulheres, promoveu no mês de março e que ,dentre outras atividades, manteve em exposição 18 fotos nas quais modelos maquiadas como se tivessem sido agredidas seguram cartazes com trechos de letras de músicas machistas e que incitam atos de violências masculinas como estupro e feminicídio.
Os autores das músicas são desde expoentes contemporâneos do funk — estilo que, até então, muitos pensavam ser o mais contumaz nesta prática — ao consagrado Noel Rosa, o Poeta da Vila (já em 1932!), passando pelos sambistas Bezerra da Silva e Moreira da Silva (eles não são irmãos!), pela dupla brega romântica Henrique e Juliano, pelos roqueiros do grupo Camisa de Vênus e por Sidney Magal, cantor carioca que no auge da carreira chegou a ser considerado símbolo sexual e a interpretar a si próprio no cinema no filme Amante Latino, quase sempre colocado e colocando-se na condição de sedutor dominante e irresistível.
Algumas frases reproduzidas nos cartazes têm conteúdo dos mais chulos e, de uma forma geral, colocam a mulher como objeto que deveria submissão ao homem. O mote para a campanha — que a partir deste mês deverá ganhar caráter itinerante — foi uma música estimulando a violência e o estupro que “estava por aí, para os jovens e para a sociedade escutarem”, conforme comentou a secretária de Políticas para Mulheres de São Leopoldo, Danusa Alhandra. Ela observou que a referida música estava nas redes sociais e até provocou polêmica quanto à criminalização ou não do seu conteúdo. “Nós condenamos, mas nos causou inquietação a condenação de apenas um tipo de música”, frisou. “Pensamos: será que é só o funk que incita a violência e a discriminação contra a mulher? E a gente descobriu, infelizmente, que é histórico.”
O Seminário foi coorganizado pelo Serviço de Paz (Serpaz) e o Programa de Gênero e Religião da Faculdades Est (PGR-EST), instituição que destacou para a cerimônia de abertura os palestrantes Deise Van, Daniéle Busanello, Luciane Linck (Luarte) e Vagner Garcia. A coordenadora do Serpaz, Marie Krhan, exaltou a importância daquele evento que se estendeu até 29 de março. “Essa noite é bem especial para a gente refletir como isso [as imagens e trechos das letras das músicas] constrói as identidades das jovens, dos jovens e de nós todos”. Já Márcia Blasi, coordenadora do PGR, ressaltou que todo Mês da Mulher deveria ser de reivindicações. “Precisamos lembrar que se estamos aqui, hoje, é porque muitas, antes de nós, lutaram para conquistar os direitos que hoje temos!”
Também presente no pátio do Centro Jacobina, local escolhido para a exposição, a vice-prefeita de São Leopoldo, Paulete Souto, destacou a necessidade de as mulheres se unirem. “Precisamos nos fortalecer, juntas, pois o mundo poderá nos ouvir e nós avançaremos, nem que seja para assegurar direitos, e já estamos nessa situação há bastante tempo.”
A abertura do Seminário Música: Uma construção de gênero também deu espaço para um sarau, animado pelas cantoras Luarte e Luisa Gonçalves, que ao contrário das músicas destacadas na campanha, apresentaram canções com mensagens positivas para as mulheres. Renata Cruz, uma das modelos que posaram para as fotos de Thales Ferreira disse que o público está acostumado a vê-la sempre bonita e bem arrumada, em contraste com a “imagem forte” em que parece ter sido espancada e estar sangrando. “Causar esse impacto foi o que me faz participar da Campanha”, afirmou. “Só de me ver daquela maneira, fiquei pensando como deve ser horrível ter marcas de sofrimento no teu corpo”, prosseguiu. “Então, minha contribuição foi essa, impactar: se uma mulher olhar para minha foto e denunciar [caso sofra alguma violência] eu já ficarei feliz.”
Danusa Alhandra
Ativista da causa feminista há 10 anos, Danusa Alhandra Silva, 33 anos, assumiu a Sepom de São Leopoldo em setembro ao substituir a advogada Joseli Troian, servidora pública municipal que passou a atuar na assessoria da Secretaria Municipal de Direitos Humanos. Ex-dirigente da União de Estudantes de Novo Hamburgo (UENH/RS) e integra a União Brasileira de Mulheres (UBM). Trabalhou nas secretarias municipais de Meio Ambiente e Planejamento, Desenvolvimento Urbano e Desenvolvimento Social de Novo Hamburgo. Desde janeiro deste ano integra a equipe da Sepom de São Leopoldo.
Linques para contato com órgãos de defesa da condição feminina e que acolhem denúncias de violência contra as mulheres e doméstica mantidos pela Prefeitura de São Paulo, governo do Estado de São Paulo e Governo Federal:
Centro de Defesa e de Convivência da Mulher de São Paulo
Secretaria Estadual da Segurança Pública/Delegacia da Defesa da Mulher
Secretaria de Governo da Presidência da República/Política para Mulheres
Ajude a denunciar e a combater a violência contra a mulher, a discriminação e a intolerância à condição feminina. Adote em sua empresa, escola, entidade ou repartição pública está campanha! Contate a Prefeitura de São Leopoldo (clique sobre o nome da cidade, lincado em azul claro) e saiba como.
O problema não é a letra de música, mas de impunidade, promovida por uma justiça fraca e leis brandas.
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