1077 – “Trançado”, disco do Almir Cortês Trio + Harvey Wainapel é excelente pedida para quando a bola descansa na Rússia

Prezados amigos e seguidores:

Aqui na redação do Barulho d’água Música, entre uma secada básica na Argentina, na Alemanha e na Espanha e sem se deixar levar pelo tom pacheco do Tino Marcos e seus coleguinhas mais ufânicos da emissora do Plim-plim — isto é, torcendo, mas apenas discreta e sociologicamente para a atual equipe daquela seleção que tomou de 7×1 para os germânicos –, pomos para rolar o álbum do Almir Cortês Trio + Harvey Wainapel, Trançado, regalo que o músico Almir Côrtes nos enviou lá da Cidade Maravilhosa. São quase 47 minutos, um pouco mais que um tempo de jogo de futebol, mas daqueles que você a toda hora quer ficar revendo (neste caso reouvindo) os melhores momentos, pois Côrtes e os parças dele tabelam valsas, frevos experimentais, jazz, maracatu, ijexá e assinam com a categoria própria dos fora de série um golaço feito de encontros — ou, como o próprio título do álbum sugere, de música entendida como a possibilidade de mistura que se harmoniza e cria beleza para os ouvidos.

O Almir Côrtes Trio é formado pelo baiano de Santo Antônio de Jesus (bandolim, guitarra, violão, viola caipira e guitarra baiana), Ronaldo Saggiorato (baixo de seis cordas e voz) e Chico Santana (percussão). Com o clarinetista e saxofonista norte-americano Wainapel (clarinete, sax alto e soprano) reforçando o time, Trançado traz leituras instrumentais contemporâneas e cheias de estilo de sucessos como Meio de Campo, de Gilberto Gil (olha ai, de novo, o futebol, com as vênias a Pelé, Afosinho, Tostão); Saudade, valsa de Carlos Oliveira; e Donna Lee, do bird Charlie Parker, num arranjo que é chiruliruli-chirulilurá onde a coruja dorme de Nailor Proveta. Trançado, merecidamente contemplado por edital do ProAC de 2015, apresenta, ainda, embaixadinhas de Pascoal de Barros, de Ernesto Nazareth e de Louis Moreau Gottschalk, além de trabalhos autorais do Almir Côrtes Trio.

O pianista, arranjador e compositor André Mehmari entra em campo e chacoalha a rede com outro arranjo de craque para Cubanos/Danza opus 33, faixa que une Danza, de Gottschalk, e Cubanos, de Nazareth. Mehmari também ficou responsável pelo texto do encarte do disco Trançado e ao receber a incumbência bateu de prima: “(…) essa música acolhe, aquece e nos convida a observar sua complexa trama de perto, e reconhecer ali uma identidade plural, nossa pele e alma mestiça”.

Afonsinho

Embora o assunto aqui seja música boa, abrindo o segundo tempo vale a pena seguir levando a bola para o terreno do futebol e contar um pouco da trajetória de um dos jogadores mencionados por Gil em Meio de Campo: o paulista Afonsinho, cujo temperamento rebelde e convicções pessoais o tiram do lugar comum para transformá-lo no primeiro craque brasileiro a conquistar o passe livre no país.

Para começo de conversa, Afonso Celso Garcia Reis, como se chama o hoje médico nascido em Marília (SP), foi revelado como meia-armador não por Santos, Corinthians, Palmeiras ou São Paulo, os gigantes do Estado, mas pelo XV de Novembro de Jaú, em 1962. Em 1965, mudou-se para o Botafogo, clube pelo qual foi campeão várias vezes, chegando inclusive a ser o capitão da equipe campeã da Taça Brasil, em 1968. Em julho de 1970, em razão de divergências com a diretoria do Glorioso, foi emprestado ao Olaria, na época comandado pelo técnico Jair da Rosa Pinto. No mesmo ano, voltaria ao Botafogo, mas, preterido, amargou “geladeira” de oito meses. “Encostado” e com o contrato suspenso, a direção alvinegra o  impedia de treinar por um motivo fútil: Afonsinho resistia em raspar a barba e aparar os cabelos compridos que passara a usar depois de voltar do empréstimo ao Olaria.

Diante da postura botafoguense, Afonsinho resolveu deixar o clube e pediu a liberação de seu “passe”, o que os cartolas, obviamente, negaram. O jogador, então, mostrou personalidade e recorreu ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva. “Por trás de tudo isso havia a tentativa de se impor uma medida de força também no esporte [vale a pena recordar: naquele contexto o Brasil vivia os piores momentos dos ‘anos de chumbo’, pois a ditadura militar recrudescera ao baixar o AI-5 e impunha várias medidas apoiada em censura à liberdade de comunicação e imprensa e aos costumes individuais e cabeludo era visto como ‘subversivo’]”, recorda Afonsinho. A partir daí, juntamente com o meu pai, um ex-ferroviário que se formara em Direito, partimos para garantir o meu direito de trabalhar.”

Posteriormente, com a ajuda de outro advogado, Rui Piva, e de Rafael de Almeida Magalhães, mas sublinhando que “só depois de muita luta”, Afonsinho conseguiu o passe livre, em março de 1971, concedido pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva. A estratégia dos advogados do jogador foi simplesmente “utilizar um princípio de direito comum na Justiça Desportiva”, relembra Piva. O direito ao passe livre foi devidamente instituído apenas 27 anos depois, pela Lei n° 9615, de março de 1998.

Afonsinho na época em que jogava pelo Santos: passe livre para manter a cabeleira e a barba e se afirmar como craque dentro das quatro linhas e símbolo de resistência e da contracultura fora delas

Afonsinho também vestiu as camisas do Vasco da Gama, do Santos, do Flamengo, do América de Minas Gerais, do Madureira e do Fluminense. Paralelamente, enquanto dedicava-se ao futebol, estudou Medicina – formou-se pela Faculdade de Ciências Médicas da UERJ e, depois, trabalhou como psiquiatra no Instituto Pinel durante cerca de trinta anos, até se aposentar. Politizado, engajou-se em movimentos estudantis, encontrando fôlego, ainda, para também defender que os colegas da bola, na época em que atuava, fossem os donos do próprio passe.

Por sua atividade política dentro e fora do mundo do futebol, em pleno governo do linha-dura Ernesto Garrastazu Médici, Afonsinho esteve na mira dos órgãos de repressão e sabia que poderia ter sido enquadrado, sobretudo depois de ser chamado a entrar para os grupos de luta armada, no final da década dos anos 1960. “Se eu tivesse juízo, me internava num mosteiro para passar o resto da vida agradecendo”, afirma o médico.

Barba Cabelo & Bigode

O levante como método e modo de vida: acaba de sair Barba Cabelo & Bigode, livro-documentário de Lúcio Branco que relata a história de Afonsinho, Nei Conceição e Paulo Cezar Lima, o Caju, e o futebol enquanto insurreição e busca de liberdade em plena ditadura, fazendo uma importantíssima ponte do futebol com a contracultura. Um dos livros mais incríveis que a Azougue já editou. E para celebrar esse livro-antídoto ao futebol institucionalizado, durante a Copa do Mundo da Rússia quem comprá-lo no site da Hedra receberá de brinde a nova edição ampliada do livro de depoimentos sobre Maio de 68.

Permeado de relatos que misturam futebol e política, Barba, Cabelo & Bigode reúne depoimentos e fotos raras de Nei Conceição, Afonsinho e  Caju, craques da bola e da contestação, que fizeram história fora e dentro dos gramados, onde jogaram tanto no Botafogo, quanto na seleção brasileira. Herdeiros da escola criativa que teve seu apogeu na geração campeã de 1958, os três jogadores se destacaram por conceberem o futebol na sua dimensão cultural maior. Iniciaram sua trajetória no futebol em meados dos anos 1960, momento histórico de forte repressão política no país.
Originalmente na condição de companheiros de uma consagrada geração de craques do Fogão, não abriram mão da luta pela liberdade, mesmo quando a ditadura militar decidiu convocar a si própria para também entrar em campo. No ano em que se realiza a 21ª edição da Copa do Mundo, na Rússia, e quatro após ainda estarmos avaliando qual seria o real legado da última, com o 7×1 ocorrido em pleno solo brasileiro, três referências fundamentais da prática – e da reflexão – em alto nível do esporte mais popular do mundo, na sua mais genuína expressão local, o futebol-arte, têm muito a dizer sobre o tema.

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