Prezados amigos e seguidores:
Aqui na redação do Barulho d’água Música, entre uma secada básica na Argentina, na Alemanha e na Espanha e sem se deixar levar pelo tom pacheco do Tino Marcos e seus coleguinhas mais ufânicos da emissora do Plim-plim — isto é, torcendo, mas apenas discreta e sociologicamente para a atual equipe daquela seleção que tomou de 7×1 para os germânicos –, pomos para rolar o álbum do Almir Cortês Trio + Harvey Wainapel, Trançado, regalo que o músico Almir Côrtes nos enviou lá da Cidade Maravilhosa. São quase 47 minutos, um pouco mais que um tempo de jogo de futebol, mas daqueles que você a toda hora quer ficar revendo (neste caso reouvindo) os melhores momentos, pois Côrtes e os parças dele tabelam valsas, frevos experimentais, jazz, maracatu, ijexá e assinam com a categoria própria dos fora de série um golaço feito de encontros — ou, como o próprio título do álbum sugere, de música entendida como a possibilidade de mistura que se harmoniza e cria beleza para os ouvidos.
O Almir Côrtes Trio é formado pelo baiano de Santo Antônio de Jesus (bandolim, guitarra, violão, viola caipira e guitarra baiana), Ronaldo Saggiorato (baixo de seis cordas e voz) e Chico Santana (percussão). Com o clarinetista e saxofonista norte-americano Wainapel (clarinete, sax alto e soprano) reforçando o time, Trançado traz leituras instrumentais contemporâneas e cheias de estilo de sucessos como Meio de Campo, de Gilberto Gil (olha ai, de novo, o futebol, com as vênias a Pelé, Afosinho, Tostão); Saudade, valsa de Carlos Oliveira; e Donna Lee, do bird Charlie Parker, num arranjo que é chiruliruli-chirulilurá onde a coruja dorme de Nailor Proveta. Trançado, merecidamente contemplado por edital do ProAC de 2015, apresenta, ainda, embaixadinhas de Pascoal de Barros, de Ernesto Nazareth e de Louis Moreau Gottschalk, além de trabalhos autorais do Almir Côrtes Trio.
O pianista, arranjador e compositor André Mehmari entra em campo e chacoalha a rede com outro arranjo de craque para Cubanos/Danza opus 33, faixa que une Danza, de Gottschalk, e Cubanos, de Nazareth. Mehmari também ficou responsável pelo texto do encarte do disco Trançado e ao receber a incumbência bateu de prima: “(…) essa música acolhe, aquece e nos convida a observar sua complexa trama de perto, e reconhecer ali uma identidade plural, nossa pele e alma mestiça”.
Afonsinho
Embora o assunto aqui seja música boa, abrindo o segundo tempo vale a pena seguir levando a bola para o terreno do futebol e contar um pouco da trajetória de um dos jogadores mencionados por Gil em Meio de Campo: o paulista Afonsinho, cujo temperamento rebelde e convicções pessoais o tiram do lugar comum para transformá-lo no primeiro craque brasileiro a conquistar o passe livre no país.
Para começo de conversa, Afonso Celso Garcia Reis, como se chama o hoje médico nascido em Marília (SP), foi revelado como meia-armador não por Santos, Corinthians, Palmeiras ou São Paulo, os gigantes do Estado, mas pelo XV de Novembro de Jaú, em 1962. Em 1965, mudou-se para o Botafogo, clube pelo qual foi campeão várias vezes, chegando inclusive a ser o capitão da equipe campeã da Taça Brasil, em 1968. Em julho de 1970, em razão de divergências com a diretoria do Glorioso, foi emprestado ao Olaria, na época comandado pelo técnico Jair da Rosa Pinto. No mesmo ano, voltaria ao Botafogo, mas, preterido, amargou “geladeira” de oito meses. “Encostado” e com o contrato suspenso, a direção alvinegra o impedia de treinar por um motivo fútil: Afonsinho resistia em raspar a barba e aparar os cabelos compridos que passara a usar depois de voltar do empréstimo ao Olaria.
Diante da postura botafoguense, Afonsinho resolveu deixar o clube e pediu a liberação de seu “passe”, o que os cartolas, obviamente, negaram. O jogador, então, mostrou personalidade e recorreu ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva. “Por trás de tudo isso havia a tentativa de se impor uma medida de força também no esporte [vale a pena recordar: naquele contexto o Brasil vivia os piores momentos dos ‘anos de chumbo’, pois a ditadura militar recrudescera ao baixar o AI-5 e impunha várias medidas apoiada em censura à liberdade de comunicação e imprensa e aos costumes individuais e cabeludo era visto como ‘subversivo’]”, recorda Afonsinho. “A partir daí, juntamente com o meu pai, um ex-ferroviário que se formara em Direito, partimos para garantir o meu direito de trabalhar.”
Posteriormente, com a ajuda de outro advogado, Rui Piva, e de Rafael de Almeida Magalhães, mas sublinhando que “só depois de muita luta”, Afonsinho conseguiu o passe livre, em março de 1971, concedido pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva. A estratégia dos advogados do jogador foi simplesmente “utilizar um princípio de direito comum na Justiça Desportiva”, relembra Piva. O direito ao passe livre foi devidamente instituído apenas 27 anos depois, pela Lei n° 9615, de março de 1998.

Afonsinho na época em que jogava pelo Santos: passe livre para manter a cabeleira e a barba e se afirmar como craque dentro das quatro linhas e símbolo de resistência e da contracultura fora delas
Afonsinho também vestiu as camisas do Vasco da Gama, do Santos, do Flamengo, do América de Minas Gerais, do Madureira e do Fluminense. Paralelamente, enquanto dedicava-se ao futebol, estudou Medicina – formou-se pela Faculdade de Ciências Médicas da UERJ e, depois, trabalhou como psiquiatra no Instituto Pinel durante cerca de trinta anos, até se aposentar. Politizado, engajou-se em movimentos estudantis, encontrando fôlego, ainda, para também defender que os colegas da bola, na época em que atuava, fossem os donos do próprio passe.
Por sua atividade política dentro e fora do mundo do futebol, em pleno governo do linha-dura Ernesto Garrastazu Médici, Afonsinho esteve na mira dos órgãos de repressão e sabia que poderia ter sido enquadrado, sobretudo depois de ser chamado a entrar para os grupos de luta armada, no final da década dos anos 1960. “Se eu tivesse juízo, me internava num mosteiro para passar o resto da vida agradecendo”, afirma o médico.
Barba Cabelo & Bigode
O levante como método e modo de vida: acaba de sair Barba Cabelo & Bigode, livro-documentário de Lúcio Branco que relata a história de Afonsinho, Nei Conceição e Paulo Cezar Lima, o Caju, e o futebol enquanto insurreição e busca de liberdade em plena ditadura, fazendo uma importantíssima ponte do futebol com a contracultura. Um dos livros mais incríveis que a Azougue já editou. E para celebrar esse livro-antídoto ao futebol institucionalizado, durante a Copa do Mundo da Rússia quem comprá-lo no site da Hedra receberá de brinde a nova edição ampliada do livro de depoimentos sobre Maio de 68.
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