Disco de 12 faixas instrumentais utiliza quatro afinações diferentes e busca refletir como o músico absorve e compartilha sua imersão em duas culturas distintas e com várias peculiaridades, mas complementares
A audição matinal de todos os sábados aqui na redação do Barulho d’água Música, em São Roque, Interior de São Paulo, começou neste dia 8/12 com Utopia, álbum instrumental ainda cheirando à tinta fresca, posto que recém-lançado, com 12 faixas autorais do compositor, pesquisador e arranjador Sidnei de Oliveira, gaúcho de São Francisco de Paula (RS) radicado na cidade de São Paulo. Segundo álbum da carreira do músico, Utopia vem mostrar conforme as palavras do próprio autor o “outro lado” dele, não apenas o musical, mas também o do perfil artístico que envolve a obra do compositor.
Parte das músicas foi composta na capital da Alemanha, a cidade de Berlim, durante o período de doutorado dele pela Universität Leipzig: são composições imersas por leituras filosóficas e vivência de uma nova cultura, ligada principalmente às artes locais, e que dialogam com as demais composições, desenvolvidas no Brasil.
O álbum ainda traz informações no encarte em Português, em Alemão e em Espanhol. Em Berlim, Sidnei de Oliveira cursou Filosofia da Música em grau de Mestrado e tinha como principal tema de dissertação o drama wagneriano Tristan und Isolde e a filosofia de Arthur Schopenhauer. Como o primeiro álbum de Sidnei de Oliveira, Prólogo, é um trabalho de composição sob várias influências — principalmente do meio da viola caipira–, Utopia explorou outra vertente: não tem nenhuma composição relacionada ao universo do disco anterior, tanto é que a única composição deste segundo disco baseada em algum gênero musical ou ritmo possível de classificação é a faixa #9: trata-se de uma Chacarera, ritmo característico de Santiago del Estero – Argentina e muito tocado no Rio Grande do Sul.
Em Prólogo Sidnei de Oliveira gravou com cinco afinações diferentes. Já em Utopia, como o objetivo não era repercutir apenas e isoladamente a beleza da Viola Caipira, mas sim a composição musical, optou por quatro afinações de Viola Caipira em 6 obras arranjadas para o instrumento, enquanto para segunda parte — ou seja, mais 6 –, o preferido foi o Violão – sendo 5 com Violão de 12 Cordas, buscando uma sonoridade ímpar e mais próxima da Viola, e 1 com Violão de Nylon. Sidnei de Oliveira também gravou os efeitos percussivos como o Bombo Leguero, instrumento escolhido para reaproximá-lo ao máximo das próprias origens: “Desta forma eu não me distanciaria da minha essência enquanto um gaúcho nascido de Cazuza Ferreira¹”, observou o autor.
Sidnei também apresentou comentários sobre algumas das composições de Utopia. Atmosphäre, que abre o disco, foi a primeira música nascida em terras germânicas, com a intenção de apresentar as primeiras impressões de como ele recebia a mudança cultural em curso, em vários aspectos. Sublimar busca a conexão com o sublime e como esta qualidade é percebida no mar, no sentido metafísico da Filosofia da Música e também da metafísica do belo em Schopenhauer.
Em Afluência Sidnei revela ter pensado em um processo inverso do que a academia tende a realizar quando discorre sobre Filosofia da Música, a saber, analisar a música a partir de determinada abordagem filosófica. O elemento água retorna em Afluência, que vai às fontes bebidas por Heráclito de Éfeso e dialoga, principalmente, com o devir heraclitiano — mais especificamente com o exemplo que o filósofo utiliza sobre o rio: desta forma a música está em constante mudança e não tem repetições.

Em Cazuza Ferreira, o pai e um primo de Sidnei caminham defronte à propriedade onde o músico cresceu

Cenas cotidianas de Cazuza Ferreira, onde um homem lê, e Berlim, na praça do portal de Brandenburgo, dois lugares que inspiraram o novo trabalho do gaúcho Sidnei de Oliveira
Já a influência árabe em nossa cultura surge retratada em Misturança; À margem denota situações em que todos nós nos encontramos em determinados momentos, isto é, à margem de algo. Em Na direção dos trilhos, composta a partir do cotidiano em Berlim e na utilização de todos os espaços da cidade sobre os trilhos que a transpassam. O voz no início da música é a do locutor que informa as estações do S-Bahn (Ring) –trem cujas linhas formam um anel em Berlim; já o som que finaliza a música foi captado em um vagão dos trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) , em São Paulo.
Aire de Chacarera (Origem distorcida), composta no Violão de Nylon, teve como inspiração show instrumental do gaitista Renato Borghetti e do violonista Arthur Bonilha que Sidnei de Oliveira assistiu pelo computador. “Depois de assistir ao show por completo, peguei o violão e compus um ritmo tradicional da Argentina, mas que dialoga com a cultura gauchesca”, recordou. “Origem distorcida faz parte do nome por não ser uma Chacarera² exatamente dentro das formas e compassos que caracterizam o ritmo argentino, pois utilizei a ‘liberdade poética’ para compor uma chacarera em Berlim.”
A música que fecha o disco, Clamor Silenciado, não estava planejada para Utopia. Sidnei de Oliveira a compôs consternado após trágica ocorrência que abalou a cidade de São Paulo e o Brasil em 1° de maio deste ano: o incêndio, seguido de desabamento dos 24 andares, do antigo Edifício Wilton Paes de Almeida, localizado na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Antônio de Godói, próximo ao largo do Paiçandu. O prédio abrigava várias famílias de sem-teto e ao encerramento das buscas, em 13 de maio, o Corpo de Bombeiros contabilizou entre corpos resgatados dos escombros e outros que jamais foram localizados ao menos 9 mortos, incluindo dois garotos, gêmeos de 10 anos. Sidnei dedica o tema — durante o qual canta em tom de lamento – “a todos os moradores de rua, uma vez que são considerados invisíveis perante a sociedade” e o encerra com um poema autoral também em Português, em Alemão e em Espanhol: “‘Não adianta gritar’” “Gritar por direito silencia Silencia a voz do outro Outro… excluído como eu.”
Desta forma, Sidnei de Oliveira frisa que Utopia marca um trabalho de independência composicional, pois não se rende a influências musicais, somente influências vividas, mas sem o afastamento de sua origem mesmo que metade do disco tenha sido composta do outro lado do Oceano Atlântico. Utopia, ele reforça, “não é um CD apenas de Viola Caipira, uma vez que sonoramente, muitos ouvintes não irão reconhecer as músicas que foram compostas com Viola e Violão de 12 Cordas, pois a sonoridade de cada instrumento é o que importa para o compositor”.
Sobre o encarte, vale a pena destacar: foi pensado como obra artística da qual o conteúdo musical é apenas uma parte, valorizando desde os desenhos elaborados que o próprio Sidnei assina, até as fotos de Vinícius Ribeiro Pontello — mesmo fotógrafo de Prólogo. Lenara Abreu ficou encarregada pela direção musical.
Dois blocos

Imagem da capa do álbum novo de Sidnei de Oliveira
Há, ainda, outra peculiaridade em Utopia: a foto do verso do encarte, desdobrada, tem, exatamente, o tamanho de uma capa de LP; a imagem captura uma paisagem de em Gonçalves (MG) e é de autoria de Pontello, que fez também o instantâneo em que o violeiro toca sentado com os pés mergulhados em um rio. Sidnei de Oliveira buscou, de fato, resgatar elementos gráficos presentes em bolachões, tanto que a face de Utopia, impressa em preto, simula a de um vinil. com direito, inclusive, aos sulcos.
E não é só nestes detalhes que se revelam a semelhança com os 33 rpm. Utopia tem dois lados, como um disco antigo, que Sidnei batizou de “Cazuza Ferreira” [A] e de Berlin [B], ambos representados pelos mapas dos dois lugares e que separam as músicas compostas no Brasil daquelas que produziu na Alemanha.
A disposição das faixas em duas bandas representariam, portanto, os lados A e B do álbum. Mas, para além de uma divisão física e geográfica, os dois blocos revelam outra dimensão: um compositor que tem uma raiz (o RS) e a ela pertence, responsável pela formação de seus valores mais absolutos, incluindo a face caipira adquirida no distrito rural de Cazuza Ferreira e as influências culturais deste berço que, onde quer que ele vá, carregará consigo enquanto viver; e aquela que apesar de todos pertencermos a uma origem , torna o homem universal a partir da inserção em uma nova cultura, com tendências mais globalizantes, mas também impregnada de manifestações típicas e locais; no caso de Sidnei de Oliveira, entretanto nenhum destes dois lados, ambos fortes e repletos de particularidades, predomina sobre o outro, ao contrário: acabam se complementando para formar o músico que, mais do que um artista, passa a ser um cidadão do mundo, capaz de dialogar, de se expressar e de ser entendido pelo público, seja qual for o local do planeta onde sua música for ouvida.
Atualmente Sidnei de Oliveira é pós-doutorando em música pelo polo Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP); sua pesquisa em questão é sobre a Viola Caipira, o Violeiro, o Caipira, a indústria da cultura e o estereótipo do caipira. Sidnei discorre, principalmente, sobre o pensamento hegemônico da academia, assim como a forma romantizada do caipira que é desenvolvida em artigos e livros, sejam estes do início do século XX ou ainda nos dias de hoje.
¹ Cazuza Ferreira é um distrito pertencente ao município de São Francisco de Paula, no estado do Rio Grande do Sul. A sede deste distrito fica a 122 quilômetros da sede do município, via estradas locais, Rota do Sol e RS-020. Cazuza Ferreira é um dos únicos locais do Rio Grande do Sul onde ocorrem as cavalhadas, espetáculo com mais de 120 anos de existência nesta localidade e ‘torrão natal’ de Batista Bossle, autor do Dicionário Gaúcho Brasileiro, considerada “A mais completa obra de referência lexicográfica do ‘idioma’ dos gaúchos.” (Artes e Ofícios Editora). Entre as décadas de 1970 a 1980, ficou marcado pela grande exploração de madeira: a árvore símbolo, araucária, foi dizimada quase que por completo na região.
2 Chacarera é uma dança e músicapopular originária do noroeste da Argentina[1] desde o século XIX. A música toca-se geralmente com violão, violino, acordeão e bombo leguero. A chacarera já era dançada nas fazendas de Santiago del Estero no início do século XVIII durante a conquista da Coroa Espanhola, na época colonial. A chacarera pertence ao grupo de danças picarescas, de ritmo ágil e caráter muito alegre e festivo. No caso da chacarera boliviana a vestimenta da mulher apresenta flores estampadas e são de cores cálidas, babados, avental e sapatos de salto baixo. Em nenhum caso existem fitas de cor no cabelo, e o penteado é uma trança. Já O homem calça botas, bombachas, rastras, camisa, lenço, chapéu e, nas épocas de frio, poncho. Na Bolívia a chacarera é bastante difundida na província Gran Chaco e no departamento de Tarija e mais atualmente tem se difundido bastante nas entradas (desfiles) folclóricas em La Paz, Oruro e Cochabamba.
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1043 – Curso livre de Introdução à Filosofia da Música inclui concerto de viola caipira
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Sempre acreditei em seu trabalho, o amor à arte e a total entrega vencendo todos os desafios , restrições e gosto musical em nosso País, nunca desviou seu foco, provando que a missão que recebeste não fora abandonada.
Parabéns meu amigo.ilidio@
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Ilidio Balan: o que apreciamos na obra de Sidnei de Oliveira é o denodo dele em ir além de alguns preceitos que regem o mercado da música, da arte, e do mundo do entretenimento já que ambos os álbuns que ele gravou são mais do que apenas discos, são complementos de um trabalho de estudos e de pesquisas universitárias, ou seja, não foram produzidos como mera mercadoria e como “mais um álbum de carreira”. Sidnei de Oliveira não faz concessões, aliás, nem mesmo à Academia, já que suas composições, observações e textos costumam questionar valores postos como pétreos e em torno dos quais já se formou consenso muitas vezes apoiados em definições e conceitos duvidosos.
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