1207 – Paisagens, primeiro disco de Ivan Vilela (MG), chega à maioridade e é destaque em festival na Alemanha

Álbum contem 17 faixas compostas e tocadas de modos peculiares no universo da viola de dez cordas e desde o seu lançamento, em 1998, já supera a casa dos 25 mil exemplares vendidos de mão em mão

O compositor, pesquisador e professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), violeiro Ivan Vilela, está na Alemanha, país europeu no qual protagonizará duas apresentações como uma das atrações do Rudolstadt Roots and Folk Music, festival que reunirá músicos de várias partes do mundo iniciado na quinta-feira, 4, e previsto para ser encerrado no domingo, 7, em Rudolstadt, cidade localizada no distrito de Saalfeld-Rudolstadt, estado da Turíngia.  O brasileiro poderá ser ouvido pela plateia em dois concertos marcados para às 17 horas do local, em uma praça da cidade, neste sábado, 6, e para às 15 horas, agora no teatro central, do domingo, 7. O repertório que Ivan Vilela executará terá entre outras músicas do seu álbum Paisagens, o primeiro disco solo de sua carreira e que está chegando aos 21 anos de lançamento.

Ivan Vilela é um dos maiores apoiadores deste blogue. Seu disco Paisagens é tão emblemático no universo da música de viola e no meio caipira que mereceu um programa  dedicado a ele na série USP Especiais, da rádio paulistana USP FM (93,7 MHz), apresentado no dia 29 de maio de 2019. Paisagens reúne 17 faixas instrumentais¹ , todas com arranjos de Vilela e entre as quais apenas Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e Saudade de Minha Terra (Goiá e Belmonte) não são composições do mineiro de Itajubá (acesse o linque por aqui e ouça a íntegra do programa).

Paisagens foi indicado ao Prêmio Sharp em 1999 como Revelação Instrumental. Para sair do papel, no ano anterior, contara com generosa e decisiva contribuição do engenheiro Arlindo, irmão de Ivan Vilela. Desde o lançamento, de mão em mão já vendeu quantidade superior a 26 mil unidades. Traz as participações de Roberto Magrão Peres (percussão e objetos de cerâmica), Luiz Henrique Fiaminghi (rabecas, feitas por “sêo” Nelson da Rabeca e Zé Côco do Riachão, duas das maiores referências do instrumento), Ricardo Matsuda (violão), Mané Silveira (flautas), João Carlos Dalgalrrondo (moringa) e Gabi Araújo (“a alma por trás de tudo”).

Um dos mais belos discos de viola caipira — que nas palavras de Vilela agora, em 2019, chega à maioridade expressa por seus 21 anos desde o lançamentoPaisagens é tão popular, quanto erudito, reverbera ecos das obras dos escritores Guimarães RosaJ. R. R. Tolkien autores, entre outros clássicos literários, de Grande Sertão: Veredas e O Senhor dos Anéis, cujos principais personagens abrigam ricos arquétipos, com características fundamentais para a compreensão da alma humana. E é ungido pela religiosidade marcante e inextricável tanto do próprio devoto de São Benedito, que é Ivan Vilela, quanto daquela que frutifica e se torna esteio, contida em manifestações, costumes e hábitos dos conterrâneos dele em todo o estado mineiro.

A religiosidade captada pelas faixas perpassa da face Sul do estado natal –porção onde se encrava o berço de Ivan Vilela e parte da Serra da Mantiqueira emoldura o horizonte com sua abundância em águas e mais variadas imanações de luz — esta uma grandeza que por se irradiar de formas e intensidades diferentes em cada montanha do conjunto de serras comum aos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais engendra emoções ímpares, feixes de energia que acordam o interior e levam a um evoluído modo de ver, de ouvir e de perceber que fermentam a espiritualidade –, à Norte das Alterosas, região na qual com igual expressividade que a “montanha que chora” ruge o Jequitinhonha e predomina o sertão físico. Este universo magistralmente delineado por Guimarães Rosa — para além-Minas, inclusive — apesar de sua forma mais bruta e árida, visto amiúde nada traz de rústico, posto que impõe, como Vilela percebeu — seja pela crueldade da quase pobreza material absoluta dos seus filhos, seja pelos rigores climáticos — a essencialidade ao/do ser e o predomínio desta dimensão sobre a do ter. Esta condição de sobrevivência acaba por moldar a resistência, a bravura e a mais fervorosa das branduras, resultando em uma dialética que, ao invés de excluir e opor, complementa e transforma quem ali vive: o árido sertão geográfico, no íntimo de cada um, floresce a delicadeza e a necessária resiliência, virtudes que adubam a fé e sintetizam naquela única frase o que é o caipira, o sertanejo: antes de tudo, um forte.10

Nascido em Itajubá (MG), Vilela se formou em Composição Musical na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde também fez Mestrado em Música. Em 2011, obteve o doutorado em Psicologia Social pela USP, com a tese Uma História Social da Música Caipira. A edição de USP Especiais foi uma reapresentação do programa originalmente transmitido em 2 de novembro de 2018, pouco depois de Paisagens ter chegado aos 20 anos. Durante o programa, Vilela referiu-se muito a estes dois mundos anteriormente mencionados, aparentemente díspares e incongruentes, já que ambos ressoam em Paisagens e são os objetos de observações, das pesquisas, das vivências e inspiração que levam às composições e ao jeito peculiar de Ivan Vilela tocar viola.

O professor, gentilmente, atendeu ao Barulho d’água Música para uma conversa na qual aprofundou parte daquelas colocações sobre como se deu o processo de elaboração e da gravação de Paisagens. E revelou ricos detalhes e influências do projeto para a obra que, enfim consumada, Zeza Amaral definiu no texto de apresentação do disco como um trabalho para ser ouvido ajoelhado, como quem ora em sincera contrição, pois que, entre outras sensações e benefícios, desperta e deixa no ar “um aroma de manga rosa, o sabor da mulher amada”. Acrescente-se: tudo é acústico, ao natural, sem truques ou correções posteriores de e em estúdio, assim tudo saiu conforme estava planejado.

Ainda nas palavras de Amaral: Paisagens é como um saci pererê pego em um redemoinho. Mas, na verdade, percebemos: ele apenas concordou em se deixar aprisionar, de bom grado (se é que fingiu resistência), pois sabia o negrinho capaz de inúmeras traquinagens que o disco emula e dele evola a verdadeira alma caipira, idêntica à do próprio Pererê, à dos entes encarnados — que, teimosamente, agradecem mesmo quando a colheita é rala e nada mais resta à asa branca além de bater asas para longe do solo gretado e à dos demais seres fantásticos que também habitam o sertão. O saci, o caipira, o matuto, o capiau, o sertanêz e as incontáveis entidades etéreas com as quais convivem (os) sabem que, afinal e ainda, toda forma de música vem a ser uma reza, a expressão da fé não se dissocia da e pode, ainda, motivar a festa; é um jeito de demonstrar gratidão por termos o dom da vida e do arrepio; o direito ao encantamento que a todos nos iguala, humaniza e diviniza.

Ajuda abençoada

Abaixo, os diálogos de Ivan Vilela com o Barulho d’água Música  começam com ele recordando que:

Comecei efetivamente a tocar viola em 1992. Paisagens é de 1998, ano no qual eu peguei a viola para compor uma ópera caipira que eu recebi de encomenda. Estudava Composição Musical na Unicamp quando a Nilza Tank, um dos baluartes do canto lírico brasileiro, que à época era professora de canto, trouxe-me um libreto e me disse: “Isso aqui poderia virar uma ópera caipira”. Então fiquei do meio de 1992 até 31 de dezembro de 1994 compondo essa ópera. Eu falei: ópera caipira vai ter viola, então comecei a me aproximar da viola. Eu era violonista e a primeira atitude que tive foi ouvir os mestres violeiros. Comecei a ‘tirar’ de ouvido música caipira de quem tinha música na época, como o mestre Renato Andrade. Depois conheci o trabalho do Almir Sater e fui ‘tirando’ música dele também, tentando entender a viola de outro jeito; depois cheguei ao Gedeão da Viola e assim fui ‘tirando’ música de todo mundo. Queria ver a linguagem de cada um na viola pra saber como é que eu desenvolveria a minha. Nesse processo de descoberta da viola, fui compondo várias peças.

Em 1995, então, fiz a minha primeira apresentação solo com viola, ainda cantando algumas e apenas tocando outras, somente instrumentais. Em 1997 já estava com um filho e precisando dar aulas feito um louco. Lecionava aula particular, mais de violão do que de viola, mas começava um movimento de viola em torno de mim, em Barão Geraldo [bairro de Campinas, cidade de São Paulo]. Porque antes da Orquestra Filarmônica de Campinas7 montei uma orquestra em 1996, 97, com vários ex-alunos. Formei cerca de 200 alunos em Campinas: tinha um caderninho que eu ia anotando essas coisas, eu montava grupos, e por ai, ia. Mas enfim, como eu ainda trabalhava muito, um dia um irmão queridaço, o Arlindo, esteve lá em casa, em Campinas e me perguntou: “Porque você não grava um disco com suas músicas?” Respondi que não possuía tempo, que eu precisaria parar para escrever os arranjos que estavam todos em minha cabeça. Quando o Arlindo redarguiu de quanto tempo eu precisaria, falei que seria, mais ou menos, um mês. Ele, então, quis saber quanto eu recebia mensalmente de renda e, ao ouvir minha resposta, propôs: “Vou te dar esse dinheiro desse mês para você poder fazer o disco!”. E foi assim: ele me deu essa ajuda maravilhosa e eu pude focar na preparação do disco. Dispensei os alunos nesse tempo para ‘mergulhar’ e tecer os arranjos; saiu tudo assim, de uma vez. Eu já tinha conversado com o [Ricardo] Matsuda, de quem eu gosto demais, e queria que tocasse violão, mas ele disse: você é quem tem de fazer os arranjos das suas músicas, você tem tudo na cabeça, o jeito como você imagina os instrumentos, então faça você. O Gilberto de Syllos, baixista de Campinas com o qual eu trabalho já há muitos discos, tinha opinião igual da do Matsuda. Então em uma “sentada” eu gravei, fiz os arranjos.

O saci pego no redemoinho

Depois que eu fiz os arranjos, a ideia era fazer o disco com uma percussão de couro, mais pesada. Comecei com o violoncelo, fiz uma passagem com o cello, mas vi que não era isso, que queria outra sonoridade: fui atrás da rabeca. Então era violão, viola, rabeca e percussão em couro, com tambores e caixas. O percussionista que eu queria era específico; eu compunha pensando nas pessoas que iam tocar, sempre; o percussionista seria o Carlinhos Ferreira, mas ele não pode vir de Belo Horizonte. Então, por sugestão do Matsuda, como já tínhamos tudo na “agulha” para gravar, chamamos o Magrão, um percussionista que trabalha com cerâmicas. O resultado foi maravilhoso, pois o Magrão é muito criativo e trouxe ao disco outra sonoridade com cerâmicas.

Uma das páginas da partitura de Baiãozim Calunga, manuscrita por Ivan Vilela

O disco, assim, caminhou para um lado que me deixou muito satisfeito também. Então, fomos para o estúdio e gravamos em cinco dias. Começamos os quatro juntos, um de frente para o outro, vazando o som como se fosse um show. No último dia eu gravei os solos; de segunda a sexta-feira toda às tardes, entre as duas e as seis horas da tarde, a gente ia lá e gravava. Como já íamos com tudo bem ensaiadinho pedi ao Matsuda — que fez a direção musical — para ele fazer a mixagem porque eu mesmo não estava com cabeça para fazer. Fui no passo a passo da produção e de lá para cá esse disco, de mão em mão, vendeu 26 mil cópias até hoje desde o final de setembro de 1998 quando ele foi lançado, na entrada da primavera.

Neste ínterim ocorreu algo interessante: no final de semana, antes de entrarmos no estúdio, fizemos um show, sentamos para tocar para uns amigos e neste dia foi quando o Zeza Amaral escreveu aquele texto2. Falei antes do show: vamos por a prova, vamos tocar pra ver, né? E foi muito bonito, no dia do lançamento para valer lá no Centro de Convivência vendemos uns 130 discos, mais ou menos, e esta quantidade foi muita, pois devia ter umas trezentas, quase quatrocentas pessoas e lá cabem 600. A gente fez o show na sequência do disco e as pessoas ficaram muito comovidas porque daí o som já estava mais na ponta dos dedos, ficou bem bacana.

O uso do silêncio

Paisagens traz algumas novidades em termos de linguagem, como a utilização do contraponto como base harmônica e não propriamente os acordes; a ideia de ter uma harmonia dissipada: ela é melódica na realidade, há muito uso do silêncio também. E, de certa forma, da exploração da viola como instrumento erudito, algo que o Renato Andrade já vinha fazendo, mas agora com temáticas mais focadas no universo do caipira, do matuto, do sertanejo lá do Norte de Minas, até pela sonoridade, da busca harmônica. Em algumas músicas eu vou expandindo um pouco esses elementos, além de utilizar a técnica das dez cordas que eu vim desenvolvendo mais no último disco, ou seja: a técnica de tocar não cinco pares, mas tocar dez cordas, separadamente.

Riobaldo e Gandalf: a força dos arquétipos

Sobre algumas influências em Paisagens há bastante de J.R.R. Tolkien e Guimarães Rosa, pois eles trabalham sobre arquétipos. Todos os personagens de ambos elevam, trazem consigo alguma característica da alma humana, e isso é muito bonito. Temos, por exemplo, em O Senhor dos Anéis, a firmeza no caso do Frodo, a amizade, a entrega do San, a transformação do Gandalf. Já em relação ao Guimarães — posso dizer que talvez seja a literatura que mais leio na minha vida, embora não seja um ávido leitor porque não dá tempo para ler como gostaria — tudo que eu tento fazer com música, no fundo é uma ínfima, uma parca imitação do que o Guimarães conseguiu fazer com literatura: trazer todos esses elementos das culturas locais, das culturas regionais para dentro de uma perspectiva mais universal, mas sem perder o caráter local. O próprio Riobaldo é o mito, é o arquétipo da busca humana, de uma pessoa que não acredita em si, e, de repente, vê-se lidando com enfrentamentos pessoais para conseguir se superar; Diadorim traz o arquétipo da mulher guerreira. Em a Hora e a Vez de Augusto Matraga o Guimarães traz a história de Jesus: uma história de transformação. Guimarães pega muito esses arquétipos, mas na época do Paisagens estava com o Tolkien mais fresco na memória porque lera O Senhor dos Anéis umas cinco, seis vezes; Grande Sertão eu li umas quinze vezes e a cada dois anos tenho feito uma leitura dele que me é sempre diferente, porque, pelo Guimarães estar trabalhando com temas arquetípicos, dependendo de como está nossa vida e do que a gente tem vivido, é que vai mostrar a percepção que a gente terá, definira essa percepção. Então, hoje é assim, o Guimarães Rosa, em especial, é a grande referência da minha música, do ponto de vista musical.

Para além da literatura tenho outras influências que me marcaram muito. A primeira delas é Renato Andrade. Escutei Renato Andrade quando a Doroty Marques levou um disco dele em casa e fiquei atônito: nunca tinha imaginado, eu nem tocava viola na época; depois, com o Instrumental 1 do Almir Sater levei outra “bordoada”. Era a viola indo por outros caminhos: harmônicos de ambiência, de utilização. Depois foi Noites do Sertão e Caboclo d’Água, ambos do Tavinho Moura, que eu ouvi muito. E claro, ouvi muita música caipira. Eu ‘tirei’ muita música daquele repertório todo. Música caipira eu ouvi, sobretudo quando estava compondo a Ópera Caipira.

Fabrício Conde, compositor, escritor e violeiro, mineiro de Juiz de Fora (Foto: Marcelino Lima/Acervo Barulho d’água Música)

Essas são as principais influências, além de um músico atual, jovem — e é tão bom a gente se ver influenciado pelos jovens: o Fabrício Conde3, com aquela maneira ‘doida’ que ele tem de tocar percutindo o instrumento! Tem me chamado muito a atenção, sabe? Então, vou sempre tentando crescer, tentando estar pronto para aprender novas coisas! Como escreveu o Guimarães: “Mestre não é aquele que sempre ensina, mas aquele que, de repente aprende”. Outra frase, do Riobaldo, bonita, é: “o real não está nem na partida nem na chegada, ele se dispõe pra gente é no meio da travessia”. Então temos de estar atento a cada sinal, o tempo inteiro.

Paisagens esse ano fica com maioridade, com 21 anos, e hoje a minha grande influência, a grande busca, passou a ser tentar fazer esse jeito de como o Guimarães Rosa trabalha para dentro da minha música.

Texturas, sensações e ambiências

Quero ressaltar outro ponto. O primeiro é que, normalmente, quando eu componho, não penso em som: penso em textura, em sensação, em ambiências. Essas são as minhas buscas e o som é uma resultante disso. Nunca penso nos desenhos melódicos ou harmônicos, mas nas sensações que essa condução vai me trazendo a partir dos contrapontos que uso. E o segundo detalhe é que têm nomes da música popular (como sou professor de História da Música Popular Brasileira, na USP, ouço muita música) que me influenciam de maneira geral. Mas quero ressaltar matrizes na minha música que são Villa Lobos, Elomar, e um contrabaixista que grava pela ECM que é o Eberhard Weber. Gosto muito da maneira como ele, Weber, conduz as composições dele, com uma brecha para improvisação, mas com muita escrita, também. Um amigo de Campinas que tem uma loja de disco e entende muito de música, Antonio Dias, o Naná, falou sobre o Paisagens: você fez um disco de viola à la ECM4, aquela gravadora norueguesa pela qual o Egberto Gismonti gravou.

São Benedito, São Longuinho…

A espiritualidade é outra dimensão externalizada em Paisagens. Ivan Vilela faz agradecimentos a São Benedito, São Longuinho e à todas as legiões dos seres de luz…

Coloco isso em cada nota que eu toco. Tenho a crença de que o mundo físico se configura a partir do mundo espiritual, pode ser um mundo do pensamento, do desejo; pelo menos a vida me mostrou isso: tudo o que eu sonhei, de bom ou de ruim, chegou até a mim: a palavra e o pensamento têm muita força e eu tento trazer isto para o som.

São Benedito é meu santo de devoção, aprendi a gostar dele, sobretudo no Congado. Talvez, de pele, eu tenha nascido branco, mas todas as minhas crenças estão ligadas ao universo dos negros; tanto as misturas dos sincretismos, como a umbanda, por exemplo, pegam-me de maneira inexplicável. E estes seres de luz, todos, estão ai. Não vou dizer que eu os vejo fisicamente, mas eu os sinto o tempo inteiro e Paisagens foi a concretização de um desejo amparado por muitas energias que eu não estava vendo.

Cresci na Serra da Mantiqueira, vivi 25 anos lá. É o mundo das montanhas, com tudo o que ele oferece de percepção de luz, sobretudo. E em cada montanha há uma luz diferente, sem contar que ali também está o mundo das águas5.

A Serra da Mantiqueira está presente nos estados da região Sudeste São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, neste onde está encravada Itajubá, berço de Ivan Vilela (Foto: Holly Criative Commons)

No Vale do Jequitinhonha Ivan Vilela se deparou com a pobreza material que marca a região e influencia a espiritualidade do sertanejo, que, apesar do sofrimento, supera as adversidades com a prática da espiritualidade e rituais de fé, muitos presentes em festas e outras manifestações populares

Há, também, o mundo do sertão, onde tudo começou, porque eu comecei a me atrever para o Norte de Minas Gerais e estas andanças trouxeram certa mudança em minha percepção de vida. E isto ocorreu, com mais força, no Vale do Jequitinhonha6. Quando as férias da faculdade chegavam, saia para pesquisar. Comprava uma passagem de ônibus para Montes Claros e, chegando lá, escolhia no mapa uma cidade que eu não conhecia, por exemplo, Grão Mogol. Então pegava outro ônibus e com uma mochila nas costas e um violão ia lá conhecer. Nestas viagens o que mais me chamou a atenção foi o Vale do Jequitinhonha, ou, mais exatamente, a falta do ter: todo mundo lá é muito pobre, ninguém tem. Então você é, o ser se sobrepõe ao ter o tempo todo, numa escala oposta à que a gente vive em São Paulo e nas cidades grandes mais ligadas a uma perspectiva de consumo. Assim, de alguma maneira, a Mantiqueira me moldou pelos aspectos físicos e o sertão, o Jequitinhonha pelos seus elementos subjetivos e simbólicos: as pessoas lá têm um nível de “entrega” que me impressionou. E estas são as Paisagens: as de fora para dentro, que entram pelo tato, pela visão, pelo olfato, e a de dentro para fora, como se fosse um reflexo de uma para a outra.

O uso do mínimo para dizer o máximo

Paisagens tem um cuidado especial nos arranjos, as escritas são sempre muito econômicas, entram poucas notas. Eu resolvera fazer um arranjo inicial com cello, mas optei por rabeca por acreditar que daria um som mais raiz, até para contrastar um pouco com a sofisticação dos arranjos e os contrapontos. Também queria tentar mostrar que é possível fazer música como o Movimento Armorial8 já fazia, mais sofisticada, a partir de instrumentos que fogem da sonoridade mais tradicional, como é o caso da rabeca e, em parte, da viola, naquela época; se bem que hoje em dia, com a viola nem tanto mais: a viola voltou ao ouvido do brasileiro com força; nunca saiu, é verdade, mas estava mais latente. Paisagens tem este cuidado nos arranjos, cada notinha é pensada, é medida. E no caso do Matsuda, que é um músico excepcional, maravilhoso, fiz questões de deixar brechas de improvisação para ele que são notadas em A Força do Boi9, Paisagens, e Armorial.

O disco Paisagens acredito que acabou por cravar um sulco neste sentido de primeiro utilizar o silêncio na música, da utilização de uma linguagem horizontal, no sentido que não são acordes, mas melodias que vão se entrelaçando e andando juntas; dá para perceber isto na Valsa Para Viver Um Grande Amor e mesmo na Pra Matar a Saudade de Minas  que é quando entram todos os instrumentos, você vê que cada um está fazendo uma coisa; e também a sugestão das dez cordas pelo uso, apenas, das agudas. Na faixa Paisagens já tem uns trechos assim que só usam a corda aguda do par que tem a grave e a aguda. É um projeto de concepção, mesmo, de produzir uma música com pouca nota, com o pessoal usando o mínimo para dizer o máximo.

Notas

1 Paisagens tem 17 trilhas instrumentais, mas inicialmente Ivan Vilela planejara 18. A faixa que acabou não sendo incluída no repertório seria a única cantada e é Inté as Porteiras do Céu, que Hélio Contreiras (Rio das Contas/BA, 1930 – 2011) gravou em Esturro da Onça, álbum de 1991 com as participações especiais dos baianos Elomar, Val Macambira e Xangai

2 O texto ao qual Vilela se refere, de autoria de Zeza Amaral e abaixo reproduzido acompanha o encarte de Paisagens:

IVAN, O APÓSTOLO 

Existe um pequeno teatro em Barão Geraldo, subdistrito de Campinas, chamado Companhia Sarau. Estive lá para assistir o trabalho mais recente do violeiro Ivan Vilela. Era uma apresentação apenas para os amigos. E ele tem tantos que faltou assento… 

Tinha, é claro, a viola do Ivan, o violão do Matsuda, a rabeca do Fia e o barro ceramizado do Magrão. Tudo acústico. 

No dia seguinte, iriam entrar em estúdio. E o grande desafio era deixar registrada a sonoridade do palco. Apenas isso. Uma coisa tão fácil como pegar saci num rodamoinho. E pegaram!

Ouço agora o resultado destas almas caipiras. E a vontade é sair correndo pela vida e levar a boa nova para todos, bater de porta em porta e anunciar o nascimento da mais nova oração brasileira.

E ajoelhado ainda está o meu coração. E no ar um aroma de manga rosa, o sabor da mulher amada. Estou há dias em processo de eterna paixão, abençoado pela viola do amigo brasileiro. Mais do que música, o som que se ouve é uma prece às nossas mais longínquas tradições, não um apelo, mas um agradecimento por nossas almas caipiras… 

Quando fui ouvir pela primeira vez as orações violeiras de Vilela, vi a sua filha adormecida e protegida. Nunca mais serei capaz de ouvir uma viola sem imaginar uma criança adormecida. E que ela cresça, ame e seja feliz… 

Estou há dias buscando as palavras necessárias para explicar o que existe de mais simples na vida: a paixão pela terra, a querência pela companheira e o amor perpetuado no filho. 

E assim me faço arauto desta boa nova. E assim me converto; ainda há a possibilidade de que o homem caminha em direção ao Infinito, Tenha o Nome que tiver, Ele será sempre rezado, e lembrado, pelos dedos dos violeiros. E o Ivan é o seu mais novo apóstolo. É essa a boa nova. 

Zeza Amaral 

3 Fabrício Conde, compositor e violeiro de Juiz de Fora (MG), também incentivador deste blogue, em apresentação para o projeto Sesc Instrumental, em São Paulo, em novembro de 2014 , declarou que deve muito ao seus modos de tocar e de compor a Ivan Vilela. Conde disse que antes de conhecer Vilela era muito inquieto, gostava de misturar muitas notas, mas o conterrâneo o aconselhou a passar a valorizar o silêncio e utiliza-lo entre as notas. Disse Conde: “Eu tinha muita inquietação no começo da minha carreira, queria colocar muita coisa numa nota só. Ivan Vilela me fez aprender a respirar, respeitar o silêncio que há entre uma nota e outra. Sentindo mais a música, pude me acalmar e encontrar meu jeito de tocar”.

 4 ECM (Edition of Contemporary Music) é uma gravadora fundada em MuniqueAlemanha, em 1969 por Manfred Eicher. Embora a ECM seja mais conhecida como um selo de jazz, a gravadora lançou uma grande variedade de artistas de diversos gêneros. O lema da ECM é conhecido como “O som mais belo, depois do silêncio”  ou “o som mais belo, próximo do silêncio”.O selo foi distribuído nos Estados Unidos pela Warner Bros. RecordsPolyGram, BMG, e, desde 1999, pela Universal Music, que comprou a PolyGram.

O primeiro lançamento da ECM foi Free at Last do pianista americano Mal Waldron, em 1969. Durante alguns anos a gravadora especializou-se em jazz, lançando pianistas como Keith JarrettChick CoreaPaul Bley e Egberto Gismonti; o saxofonista Jan Garbarek, o vibrafonista Gary Burton; o baterista Paul Motianguitarristas Pat Metheny e John Abercrombiecontrabaixistas Eberhard WeberCharlie Haden e Dave Holland.

Existe uma clara ligação entre algumas gravações da ECM e a chamada world music, especialmente as gravações “folk” de Jan Garbarek e do grupo Codona (um trio formado pelos músicos Naná VasconcelosDon Cherry e Collin Walcott).

5  Mantiqueira (1)

Significado de Mantiqueira Por Valquiria Mori (SP) em 13-07-2011, do Dicionário Informal)

Montanha que chora [mantiquira] ou serra que chora segundo os indígenas que habitavam a região, talvez pela grande quantidade de cascatas, pequenas cachoeiras que descem pelas encostas formando no Vale do Paraíba uma grande quantidade de pequenos rios, afluentes do rio Paraíba que corta três estados São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, onde deságua no Atlântico.

Fonte: (https://www.dicionarioinformal.com.br/mantiqueira/

Mantiqueira (2)

Mantiqueira é uma palavra de origem tupi, formada pela junção de amana (“chuva”) e tikira (“gota, goteira”).

Em seu Dicionário de palavras brasileiras de origem indígena, Clóvis Chiaradia especula que tal nome tenha sido motivado “talvez pela grande quantidade de cascatas, pequenas cachoeiras que descem pelas encostas formando no Vale do Paraíba uma grande quantidade de pequenos rios”. Observe-se que a névoa e a umidade características da altitude poderiam bastar como justificativa.

Já vimos por que Mantiqueira não está nos dicionários. Como curiosidade, vale dizer que neles há registros dos termos que compõem a palavra. O Houaiss traz os brasileirismos amana (“chuva ou nuvem carregada de chuva”), amanaçu (“chuva forte, tempestade”) e tiquira (“aguardente de mandioca”, pela ideia de gotejamento da bebida no alambique).

Fonte (https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/mantiqueira-por-que-a-palavra-nao-esta-nos-dicionarios/)

6 Vale do Jequitinhonha é uma região situada no nordeste do estado de Minas Gerais. É uma região amplamente conhecida devido aos seus baixos indicadores sociais e também ao norte é conhecida por ter características do sertão nordestino. Por outro lado, é detentora de exuberante beleza natural e de riqueza cultural, com traços sobreviventes da cultura indígena e da cultura negra. Curiosamente, ainda, o topônimo “Jequitinhonha” é de origem indígena e tem o significado de “rio largo e cheio de peixes”.

A região, que inicialmente pertenceu à Bahia (até o final do século XVIII), foi incorporada ao estado de Minas Gerais, após a descoberta de diamantes no tijuco (região de Diamantina).

Virtualmente, é subdivida em três regiões:

  • Baixo Jequitinhonha (região que compreende a área mais próxima à Bahia).

  • Médio Jequitinhonha (região situada na parte média do Vale).

  • Alto Jequitinhonha (região mais próxima da Metropolitana de Belo Horizonte, apresentando os melhores indicadores humanos e econômicos do Vale).

7) Ivan Vilela ficou à frente da Orquestra Filarmônica de Campinas entre 2001 e 2010. Neste período a Orquestra gravou dois discos, em 2004 e em 2010. O primeiro foi premiado com o Prêmio BR na categoria Atitude

8) O Movimento Armorial foi uma iniciativa artística cujo objetivo seria criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste Brasileiro. Um dos fundadores e diretores foi o escritor Ariano Suassuna. Tal movimento procura orientar para esse fim todas as formas de expressões artísticas: músicadançaliteraturaartes plásticasteatrocinemaarquitetura, entre outras expressões. “A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus ‘cantares’, e com a xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados”, disse Suassuna.

O Movimento Armorial surgiu sob a inspiração e direção de Ariano Suassuna, com a colaboração de um grupo de artistas e escritores da região Nordeste do Brasil e o apoio do Departamento de Extensão Cultural da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários da Universidade Federal de Pernambuco. Teve início no âmbito universitário, mas ganhou apoio oficial da Prefeitura do Recife e da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco. Foi lançado oficialmente, no Recife, com a realização de um concerto e uma exposição de artes plásticas realizadas no Pátio de São Pedro, no centro da cidade.

Página da partitura de A Força do Boi

9) Ivan Vilela mencionou, particularmente, como seu deu a composição de cada faixa, uma a uma das 17, e revelou histórias, motivações, dificuldades e tempo que levou ao gestar cada uma delas, A Força do Boi, que é a última de Paisagens, exigiu quatro anos de elaboração.

10) “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, tornou-se uma das frases ícones da literatura brasileira, de autoria de Euclides da Cunha, que a escreveu em Os Sertões, livro dos mais épicos da Língua Portuguesa em todos os tempos. A obra euclidiana teve a primeira edição publicada em 1902 e anos mais tarde, mas ainda no começo do século XX, na década de 1920, mereceu uma espécie de adaptação aos olhos do jornalista, escritor, folclorista, empresário e ativista cultural brasileiro Cornélio Pires: O caipira é um obscuro e é um forte!”.

A respeito desta menção à opinião de Cornélio Pires,  para conhecê-la melhor e ter uma visão mais completa  e abrangente das definições do que pode vir a exprimir a palavra caipira, tanto quanto aos seus significados, representações e importância histórica, além de cultural, como ao seus lugares geográficos no Brasil, leia o capítulo 3 de Viola Caipira: Das Práticas Populares à Escritura da Arte (O Avivamento no Brasil), do pesquisador, compositor e violeiro Roberto Corrêa. Lançada recentemente pela Editora Viola Corrêa, a publicação é resultante da tese de Doutorado do músico, em seus mais de 40 anos de vivência com a viola.

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2 comentários sobre “1207 – Paisagens, primeiro disco de Ivan Vilela (MG), chega à maioridade e é destaque em festival na Alemanha

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