Para Fazer Chorar as Pedras (…) de Evandro Higa, traz uma investigação etnomusicológica sobre o ritmo que existe desde 1925 e aborda também a polca e o chamamé, para explicar as contribuições, semelhanças e diferenças da música paraguaia no cenário musical brasileiro
A Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade do Estado de São Paulo (USP) promoveu hoje, segunda-feira, 25 de novembro, durante aula da disciplina Música Caipira e Enraizamento, ministrada pelo professor Alberto Ikeda, o lançamento de Para Fazer Chorar as Pedras: Guarânias e Rasqueado em um Brasil Fronteiriço, livro de Evandro Rodrigues Higa publicado pela Editora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Para Fazer Chorar as Pedras é essencialmente uma investigação etnomusicológica sobre a guarânia e o rasqueado no Mato Grosso do Sul nas décadas de 1940 e 1950, mas também passa por outros gêneros musicais, como a polca paraguaia e o chamamé, para explicar as semelhanças e diferenças entre eles no cenário musical brasileiro.
“Bem além da terra do samba, somos também a terra da guarânia, da polca paraguaia brasileira, do chamamé, entre outros gêneros musicais”, afirmou Ikeda, professor do Programa de Pós-Graduação em Música da ECA. Para ele, a obra é a primeira a mostrar com propriedade e referências as influências da música paraguaia no Brasil, principalmente na região de fronteira entre os dois países. Ainda segundo Ikeda, a obra se destaca por ser pioneira no assunto e preencher um vácuo da pesquisa histórico musical sobre as influências ibéricas na música popular e caipira no Brasil.
“Esse trabalho é da maior importância, pois ajuda a suprir uma carência da academia”, observou Ikeda. “Higa partiu de algo local para mostrar a atuação disso sobre as produções musicais do resto do país”, prosseguiu. Embora historiadores e sociólogos já tenham falado sobre essa região e sua cultura musical, o diferencial do trabalho de Higa é o fato de ele ter sido feito por um musicólogo, destacou ainda Ikeda. Dessa forma o autor conseguiu usar seus conhecimentos para analisar essas músicas de modo mais específico, desde a letra até o ritmo, tornando-se, assim, uma grande referência para estudantes da área, acrescentou.
“O Brasil, no geral, se vê muito afastado da América Latina”, acredita Ikeda. “Esse livro vem nos mostrar que estamos muito mais perto do que imaginamos e a música tem um papel importantíssimo nessa aproximação.”
Ainda para o professor, os estudos sobre a cultura de música popular no Brasil estão mais concentrados no Litoral e nas influências africanas, mas também é importante conhecer as referências que vêm do Interior. E ele, então, ressaltou o fato de que os pesquisadores interessados em viola e moda caipira têm diferentes origens étnicas, citando, como exemplo, seus alunos, de diversas ascendências e lugares do Brasil, além dele mesmo e de Higa, ambos descendentes de japoneses. “As próprias pessoas envolvidas com esse tipo de música representam o país multiétnico em que vivemos.”
Professor do curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Evandro Higa concorda com as declarações do colega e apontou que é necessário desvincular o legado musical brasileiro da referência restrita ao samba e às influências do Sudeste. “O gênero de música fronteiriça aponta para o Interior, para um país ainda muito distante no imaginário popular, mas que na prática está perto”, disse. “As pessoas só precisam se familiarizar mais com essa música.” Quanto à inspiração para a pesquisa, Higa comentou que surgiu da própria vivência na fronteira com o Paraguai. “Sou do Mato Grosso do Sul e sempre me interessei pelo tema, mas não havia estudos sobre isso. Então resolvi pesquisar eu mesmo, há uns 20 anos”.
Resultado do Doutorado que apresentou à Universidade Estadual Paulista (Unesp), Para Fazer Chorar as Pedras é o segundo livro de Higa sobre o tema. O primeiro, intitulado Polca Paraguaia, Guarânia e Chamamé – Estudos sobre Três Gêneros Musicais em Campo Grande-MS, foi escrito originalmente como dissertação de mestrado, apresentada na ECA em 2005.
Música de três tempos
De acordo com matéria publicada no portal Brasil de Fato em 22 de março, na sessão Mosaico Cultural (clique aqui para ler o texto original, que permite baixar o correspondente arquivo de áudio), a tradicional música sertaneja brasileira, a música raiz e da moda de viola tiveram grande influência do ritmo genuinamente paraguaio guarânia. Em entrevista ao portal, a pesquisadora, compositora, cantora e professora paraguaia Mônica Elizetche afirmou que o gênero foi criado pelo músico de seu país José Asunción Flores, em 1925, e influenciou de tal forma a obra do poeta popular Manuel Guerrero que, junto com o compatriota Flores, ele compôs Índia, música conhecida no mundo inteiro e que aqui no Brasil tornou-se clássico a partir de uma versão de José Fortuna interpretada nas vozes da dupla Cascatinha e Inhana, mas também gravada entre outros astros nacionais por Taiguara— que fez uma tradução própria em Canções de Amor e Liberdade (1983) — Gal Costa e Paulo Sérgio.
Elizetche discorreu ao Brasil de Fato sobre os temas recorrentes das guarânias paraguaias, ou seja, mote da canção: “a guarânia traz consigo uma questão mais elaborada nas melodias, na harmonia, então levanta toda essa questão do romantismo, da questão social. No Paraguai tem muitas guarânias que falam de inundação, de ribeirinhos, por exemplo”.

Cascatinha e Inhana
Ouvinte da música caipira desde que tinha 12 anos de idade, o pesquisador, escritor e radialista Maikel Monteiro buscava referências e recortes de jornais e revistas e para tanto recorreu à discoteca da rádio Chapecó (“A Pioneira do Oeste”, de Santa Catarina) atrás de registros deste gênero nacional, o que permitiu constatar que a guarânia, depois de aportar no Brasil, fincou raízes a partir de esforços de Raul Torres e Nhô Pai, que, em viagens no final dos anos de 1930 ao Paraguai, conheceram a guarânia tocada em harpas paraguaias, com acompanhamento do violão. Então, ao trazerem o ritmo para o Brasil, pela semelhança sonora da harpa com a viola, ambos perceberam: poderiam por meio do casamento entre violas e violões, formação muito comum já à época, adaptá-la aos moldes caipira.
Então, prosseguiu o radialista, o cantor e compositor José Fortuna, apos a iniciativa de Torres e Nhô Pai, começou a verter músicas paraguaias em versões para o português, dando terreno entre os músicos às guarânias por aqui e permitindo o sucesso entre outros, de Índia. Cascatinha e Inhana, que a gravaram, alcançaram mais de meio milhão de exemplares vendidos com seus discos no Brasil em uma época na qual haviam apenas 300 mil vitrolas em todo o território nacional, observou o Brasil de Fato. Depois, outros nomes importantes da música caipira levaram adiante a influência da guarânia, com destaque para as Irmãs Castro, Irmãs Galvão, Nhô Pai e Nhô Fio e os criadores do pagode de viola, Tião Carreiro e Pardinho, além de Milionário e José Rico, por exemplo.
“Na parte técnica [a guarânia] é uma música em três tempos, só que uma música lenta. Aqui no Brasil, ela começa a ter variações como o rasqueado, por exemplo, que é também em três tempos, só que numa pegada mais rápida, porque você rasqueia os dedos pelas cordas da viola”, explicou o pesquisador catarinense. “Como a guarânia se incorporou à música caipira assim como a moda de viola, como a toada e o cururu, é muito comum considerá–la um ritmo nascido no Brasil, mas ela veio do Paraguai”, faz questão de concluir.
Patrimônio da Humanidade
Por ser um gênero importante para a música popular sul-americana e, mais especialmente, para o Paraguai, Ricardo Flecha, cantor de Asunción, capital do país vizinho, e o Centro Cultural Paraguayo Japonés estão em campanha para que a Unesco — agência internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) que trata de pautas relativas à Educação, a Ciência e a Cultura em âmbito global –, reconheçam a guarânia como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Flecha já conta com o apoio da Secretaría Nacional de Cultura para o pleito e reivindica, ainda, que o gênero também ganhe o status oficial de música oficial, distintiva do Paraguai, causas que intenta alcançar antes ainda de 2025, quando será celebrado o centenário da criação do conterrâneo Flores.
“En el año 2025 se van a conmemorar los 100 años de la creación de la Guarania y es nuestra inquietud de que la Guarania sea considerada Patrimonio Intangible de la humanidad y para eso hay que trabajar entre las instituciones, los artistas y la sociedad”, manifestou Flecha. “La propuesta es realizar conciertos, llegar a los colegios y hablar sobre Flores, explicar por qué creó la guarania, cuál es su aporte a la cultura nacional, y cómo fue un ciudadano de bien”, prosseguiu. “En esta campaña es importante que nos sumemos todos. Uno no puede amar lo que no conoce, y mucha gente no conoce la historia de la guarania, ni saben de su autor.”