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Paraibano que percorreu o Brasil e se tornou um ícone do forró sobe para o panteão que já reúne Gonzagão, Patativa do Assaré, Belchior, Dominguinhos, Zé Limeira, Chico Anysio e Cego Aderaldo, entre outros artistas nordestinos amados há várias gerações
A pandemia da Covid-19, em nova escalada mundo afora depois de uma leve, mas animadora queda na curva dos gráficos dos infectados pelo novo coronavírus e dos que perderam a vida para o agressivo nano-organismo, segue assustando muitos, embora outros em elevada monta não tenham compreendido, ainda, o poder de destruição da doença que em sua mais gravosa forma de manifestação ceifa preciosas vidas— já há um ano, pelo menos. Quando começamos a redigir esta atualização, apenas no Brasil contavam-se 7.961.673 casos confirmados, dos quais 7.096.631 recuperados, mas os mortos já eram 200.498, um contingente assustador de dimensões trágicas. Um dos que não resistiram, desencarnado na manhã de quinta-feira, 7, Genival Lacerda, o paraibano ícone da cultura nordestina, estava internado na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital de Recife (PE) desde 30 de novembro.
A assessoria de imprensa do Rei da Munganga (palavra que tem entre seus vários significados trejeito) observou em nota que o estado de saúde dele era grave, foram feitas transfusões de sangue durante a internação e a respiração exigia a ajuda de aparelhos, por conta de 75% de comprometimento dos pulmões. Perdida a batalha, um dos dez filhos do cantor, Genival Lacerda Filho, confirmou a passagem na manhã do dia 7 com uma frase curta, mas das mais tristes: “Painho faleceu”
Natural de Campina Grande (PB), uma das capitais do forró nacional, e cidadão recifense, Genival Lacerda estava com 89 anos, dois quais aos menos 68 de carreira. Médicos e familiares declararam que lutou até o último minuto para sobreviver à moléstia, entre melhoras promissoras e recaídas. Ao expirar, encerrou um ciclo durante o qual várias gerações o veneraram por todo o Brasil e, que, em 2017, reconhecendo a popularidade do cantor, motivou o então presidente Michel Temer a conceder a Lacerda a Insígnia da Ordem do Mérito Cultural no Grau de Cavaleiro, premiando ainda sua contribuição marcada pela irreverência à cultura popular.
Fãs de todas as classes e idades curtiam sobretudo o estilo musical imortalizado pelo espírito cômico e bem-humorado das letras de duplo sentido que acendiam e botavam mais lenha em fogueiras, limpavam bancos das salas de reboco, de arraiás, de feiras e de terreiros e fustigava o bicho carpinteiro a comichar, frenético, em cinturas e ventres pelos auditórios. Ademais, o modo peculiar de cantar, entre risos debochados, e de se requebrar, vestido sempre com largas camisas coloridas, inseparáveis chapéus e alparcatas (as sandálias de couro, tipicamente nordestinas, conhecida por “xô boi”) fizeram dele um dos luminares e campeões de vendagem do forró e de estilos como o xote, o xaxado e o coco.
Aos 25 anos, Genival Lacerda lançou o primeiro disco, com a interpretação de Coco de 56, em parceria com João Vicente, e de Dance o xaxado, este a quatro mãos, com Manoel Avelino. Depois, atravessou o restante da segunda metade da década de 1950 e todos os anos 1960 com uma série de lançamentos até estourar feito aqueles rojões que iluminam noites de São João com a clássica Severina xique-xique, o mais consagrado sucesso da carreira, gravado pela primeira vez em 1975 para o bolachão Aqui tem catimberê. Severina Xique Xique é uma parceria dele com João Gonçalves e ajudou a promover a venda de mais de 800 mil exemplares do álbum.
Genival também atacou como radialista nas rádios Borborema e Caturité e pilotou programa líder em audiência, O Forró de Seu Vavá. Depois de cantar a bem-sucedida história da moça que abriu a própria butique (Severina era também o nome da mãe de Genival), Lacerda seguiu bombando com músicas tais quais Radinho de Pilha, que vendeu mais de 500 mil cópias em todo o Brasil; a lista de 220 canções tem, ainda, Mate o Véio, que rapidamente fez a cabeça do povão; Quem Dera manteve-se campeã de pedidos em emissoras de todo o Brasil por anos a fio. Para manter o balão do paraibano navegando sempre em alta e sem risco de cair, vieram em seguida O Chevette da Menina; Nóis Sofre, Mas Nois Goza; Dor de Dente (Melô da Bochecha); “H” Sem Homem; e Rock do Jegue entre centenas de trilhas que se multiplicavam como milho de pipoca da melhor cepa que arrebenta sem deixar piruá e transborda da panela, enchendo um tabuleiro formado por pelo menos 70 discos entre 1956 e 2015.
Sem contar que Lacerda também tocava sanfona, não será exagero diante de tão notável obra colocá-lo para sempre no mesmo panteão no qual brilham artistas da cultura nordestina do fulgor de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Belchior, Reginaldo Rossi, Cego Aderaldo, Patativa do Assaré, Chico Anysio, Ariano Suassuna, Zé do Norte, Zé Limeira e seu concunhado Jackson do Pandeiro, por exemplo. Além de cantor e de compositor, fez pontas no cinema representando a si próprio nos filmes O Rei da Muganga (2009), Beijo 2348/72 (1990), Made in Brazil (1985) e Vamos Cantar Disco Baby (1979). Em 2008, uma turnê pelos principais destinos do forró no Nordeste (incluindo Caruaru/PE, Campina Grande e Juazeiro/BA) deu origem à gravação do documentário É tudo verdade – O Rei da Munganga, dirigido por Carolina Paiva.
A obra de Genival Lacerda já motivou segundo o Diário do Nordeste, da rede Verdes Mares, releituras, como a de Severina Xique-Xique para o disco Música de Brinquedo 2, da banda mineira Pato Fu (2017). Nos últimos anos, Genival Lacerda já vinha apresentando o filho, João Lacerda, nos palcos por onde passava. João tem carreira solo e também acompanhava, cantando, o pai. Genival fazia a defesa do “forró malícia” dizendo que a música “não era putaria, putaria é outra coisa. Isso é duplo sentido!“.
“Não sabemos ao certo como meu pai contraiu Covid-19, mesmo com todas as precauções e cuidados”, disse Genival Filho. “Ele precisava realizar algumas atividades fora de casa, para manutenção de sua saúde, eram atividades essenciais e indispensáveis”, emendou. “O pessoal está pensando que esta doença é brincadeira, mas fiquem alertas, pois não, não é, não fiquem brincando!”
O teste positivo para o coronavírus em Genival Lacerda saiu em 30 de novembro de 2020, já levando-o à UTI. Em meados de maio, o cantor tinha passado pelo hospital e sido internado após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC).
A Covid 19 assusta o mundo já há um ano e vem obrigando a humanidade a rever e resignificar vários hábitos da vida em sociedade, embora ainda não tenha se consumado o tão apregoado “novo normal”, era na qual às pessoas seriam mais cuidadosas e fraternas umas com as outras, mais cautelosas e zelosas pelo meio ambiente em âmbito planetário. No Brasil, quem acompanha os noticiários sabe o quanto as autoridades sanitárias insistem desde os primeiros casos no respeito às medidas preventivas, únicas formas de se evitar a escalada dos contágios até que possamos ser amplamente vacinados, a despeito do comportamento genocida do governo federal que nem ao menos tem um ministro da Saúde de ofício no cargo, sobretudo.
Todos os segmentos da população brasileira amargamos este flagelo, e novos casos e as mortes, com certeza subnotificados, estão longe de um controle, quem dirá fim. Desde o primeiro caso de óbito em São Paulo, em março de 2020, apenas entre artistas da música o coronavírus já matou Genival Lacerda; Paulo César Santos, o Paulinho, vocalista da banda Roupa Nova; Ubirany Félix do Nascimento, fundador do grupo Fundo de Quintal; Aldir Blanc, cantor, compositor, poeta e escritor; Ciro Pessoa, fundador da banda Titãs; Parrerito, integrante do Trio Parada Dura, entre outros. O mais louco é saber que estas mortes poderiam ter sido evitadas. E aterroriza saber que não vai demorar para que este obituário precise ser atualizado.