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Paulista de Santos, jornalista e escritor com passagem pelos principais veículos de imprensa do país e autor de mais de 25 livros morreu na cidade do Rio de Janeiro, aos 93 anos, deixando uma lista de “desafetos”
O Brasil perdeu na terça-feira, 3 de agosto, José Ramos Tinhorão, jornalista, escritor, pesquisador e talvez o mais contundente e mordaz crítico musical do jornalismo brasileiro de todos os tempos. Paulista de Santos, Tinhorão morreu aos 93 anos, na cidade do Rio de Janeiro, onde esteve internado por dois meses combatendo uma pneumonia e com a saúde abalada por um acidente vascular cerebral (AVC) que sofrera há três anos. O corpo veio para a cidade de São Paulo e está sepultado no Cemitério dos Protestantes, desde a quarta-feira, 4 de agosto.
Todas as matérias publicadas na imprensa sobre a carreira de Tinhorão destacam que enquanto esteve ativo ele foi um dos maiores historiadores da música brasileira, autor de mais de 20 livros (a maioria, 18, pela Editora 34) entre os quais Música popular – Um tema em debate e O samba agora vai – A farsa da música popular no exterior. O jornal o Estado de Minas, em artigo de Ângela Faria, por exemplo, observou que Tinhorão, “marxista convicto”, possuía “língua afiada” como defensor da integridade das raízes culturais brasileiras. Por conta desta postura, “colecionou desafetos” como Tom Jobim e bossa-novistas de ponta, mordeu e assoprou Chico Buarque (“o romântico contestador musical de olhos verdes ainda é o maior compositor produzido ao nível das camadas universitárias, desde o advento da chamada bossa-nova, dono de um estilo pessoal e, apesar de algo sofisticado, intimamente aparentado com os processos de criação das camadas populares urbanas brasileiras”); foi destratado por Caetano Veloso e outros tropicalistas; levou ácida alfinetada de Aldir Blanc e jamais engoliu os segmentos chamados “axé music” ou o “sertanejo universitário”.
LADRÃO DE GALINHAS
Outro legado de Tinhorão é um impressionante acervo de 13 mil discos, hoje confiado ao Instituto Moreira Salles (IMS), guardado em sua sede no bairro carioca Gávea — tesouro ao qual se somam 35 mil documentos, entre partituras, jornais e fotografias. A biblioteca particular de Tinhorão beirava 14 mil livros sobre cultura popular!
O portal da Agência Brasil informa em matéria de Douglas Corrêa que Tinhorão partiu de Santos para a cidade do Rio de Janeiro ainda aos 9 anos de idade. Formado em Direito e em Jornalismo, estreou nas redações em 1951, na Revista da Semana, e assinava os primeiros textos como J. Ramos. Em 1952, aos 24 anos, ainda universitário, foi levado por Armando Nogueira, colega de faculdade, para o Diário Carioca, onde trabalhou como revisor e neste ofício ganhou o apelido Tinhorão, mais tarde incorporado ao nome artístico.
No Diário Carioca assinou matéria de estreia, sobre o Natal, publicada em 25 de dezembro. De acordo com a biografia dele disponível no portal do IMS, o autor levou um susto quando leu “Reportagem de J. Ramos Tinhorão para o Diário Carioca”. O “foca”, então, foi tirar satisfações com Pompeu de Souza, chefe de redação, e teria dado nele a seguinte bronca: “Você assinou com meu apelido de redação? Eu tinha colocado J. Ramos…”. A resposta de Pompeu, com uma gargalhada, foi: “J. Ramos é nome de ladrão de galinha, tem um monte na lista telefônica. Tinhorão vai ser só você!”
Ainda conforme o repórter da Agência Brasil, Tinhorão passou também pelo Jornal do Brasil, como redator do Caderno B, entre anos de 1975 e 1980. Ali se iniciaram os embates com “inimigos” compositores e cantores. São desta época polêmicas com Paulinho da Viola, Chico Buarque e Tom Jobim. “Tinhorão afirmava que aquele tipo de música não era brasileiro”, consta no texto de Corrêa. Além do Jornal do Brasil e do Diário Carioca, ele atuou pelas redações dos jornais Última Hora e O Globo, das revistas Veja e Senhor e das TVs Rio, Excelsior e Globo.
Personagem de Nelson Rodrigues no folhetim Asfalto selvagem”¹, Tinhorão, prossegue o texto do IMS, recebeu do criador do caderno B do Jornal do Brasil, Reynaldo Jardim, a encomenda para escrever uma série sobre a história do samba, semelhante à que Luiz Orlando Carneiro produzira sobre jazz para o mesmo suplemento cultural. O jovem redator argumentou que sobre samba não existia praticamente nada. Jardim, então, sugeriu que falasse com Sérgio Cabral [pai do ex-governador fluminense e homônimo deste]. colaborador do Caderno B, que conhecia a maioria dos integrantes das escolas de samba.
Surgiu, então, o Tinhorão pesquisador da música popular, autor de memoráveis entrevistas com Ismael Silva, Alcebíades Barcellos – o Bide do Estácio-, Donga, Pixinguinha, Almirante e muitos outros para a série Primeiras lições de samba – uma tentativa de história da música popular no Rio, publicada na página ocupada por Sérgio Cabral. Em 1962, alguns artigos dessa série foram incluídos no livro Música popular: um tema em debate, que, editado pela Saga, tornou-se a obra de Tinhorão mais reeditada até os dias de hoje. No mesmo ano, começou a publicar, também no Jornal do Brasil, suas Novas contribuições à bibliografia da MPB, feitas a partir de material avulso recolhido por ele em diversos periódicos, sempre de acordo com os registros biográficos de Tinhorão disponíveis nos arquivos do IMS.
“POLÊMICO E MALDITO”
A fama de crítico impiedoso de Tinhorão ganhou corpo nos anos 1960. Durante aquela década, ele escrevia fundamentado no conceito de “materialismo histórico”, abordagem metodológica proposta por Karl Marx, artigos e colunas para diversos veículos de comunicação. Além do próprio Jornal do Brasil, assinava colunas, por exemplo, na Tribuna da Imprensa, Jornal dos Sports, Espírito Santo Agora, Jornal Rural de Juiz de Fora (MG), Singra, entre outros, apimentando a sua notoriedade de “polêmico e maldito”, rótulos que cultivou por baixar a borduna de maneira contumaz, entre outras “vítimas” de sua acidez, na Bossa Nova.

Um dos mais aclamados músicos brasileiros de todos os tempos, o compositor e maestro Tom Jobim não escapou da fúria de Tinhorão (Foto: Acervo do IMS)
As intrigas com os rapazes que gostavam das garotas de Ipanema e de verem os barquinhos a deslizar na água azul do mar foram alimentadas, segundo Ângela Faria, do Estado de Minas, por opiniões de Tinhorão sobre João Gilberto, Tom Jobim e companhia. Tinhorão acusava a Bossa Nova de ser “elitista”, nada mais do que “jazz pasteurizado”. Nesta linha, declarou à Revista Cult:
“O pessoal da bossa nova todo é representante de uma classe média carioca ligada ao jazz. Quando aparece o violão de João Gilberto, toda a harmonia da música norte-americana, pela qual esse povo era fanático, se encaixa perfeitamente. Ali, monta-se uma harmonia norte-americana tão disfarçada que parece música brasileira. Isso não é uma vitória da música brasileira. Os brasileiros ofereceram aos norte-americanos uma nova visão da sua própria música. É mais fácil para o norte-americano ouvir. Por que Frank Sinatra canta Tom Jobim e não Nelson Cavaquinho? Porque não casaria.”
E mais. Ainda segundo Tinhorão, o aparecimento da Bossa Nova na música urbana do Rio de Janeiro marcaria o afastamento definitivo do samba de suas origens populares; por críticas assim, lembrou Ângela, as ideias de Tinhorão foram tachadas de “histéricas” por Caetano Veloso. E, em 2015, durante um debate na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o crítico afirmou sentir “pena” de Jobim. “Ele tinha um equívoco fundamental: Achava que compunha música brasileira.”
ROCK PARA OTÁRIO
A incorporação de referências estrangeiras à música brasileira é outro elemento contra o qual Tinhorão apontava suas baterias e cujas rajadas acertaram em cheio, ainda, além da Bossa Nova, o Tropicalismo e segmentos da MPB, a Jovem Guarda, a axé music, o sertanejo e até o funk. “Com a chegada do funk e do sertanejo, já não há música brasileira para criticar”, alfinetou. Sempre com o dedo engatilhado, Tinhorão, segundo O Estado de Minas “fuzilou” a Tropicália (que seria “um ritmo de goteira”, “uma boa malandragem”, pois “as músicas têm várias coisas que cabem nelas: aquelas coisas muito baianas que o Gil trouxe; o Gil e o Caetano, todos, são meninos da bossa nova baiana”); sertanejos (“a música sertaneja é uma média de sons que não são urbanos, mas que também não são mais das populações rurais em si. É um nada”); Jovem Guarda (“Simplificação do rock, um rock trocado em miúdos para otário”) e, dentro deste movimento, em especial Roberto Carlos (“a versão brasileira do lixo internacional, da música internacional.”…: “durante o regime militar, fez o papel do menininho que as senhoras queriam ideal, o namoradinho ideal das suas filhas na sociedade injusta“); e o axé (“O axé não é nada. Quando se fala em samba, te dou vários exemplos de samba. Quando se fala em frevo, música sertaneja, baião, te dou vários exemplos. O que é axé? Não é nada, rapaz. É uma manifestação dentro das formas negras de você se divertir, mas não tem uma estrutura”).
Do artigo de Ângela Faria para o EM sobre Tinhorão vale a pena destacar, ainda, a pinimba dele com Aldir Blanc – levado no ano passado pela Covid-19 e consagrado letrista e compositor brasileiro ao lado, por exemplo, do genial Paulo César Pinheiro. Para defender o parceiro João Bosco foi que Blanc abriu rusgas contra o jornalista e incluiu Tinhorão entre serpentes venenosas citadas em Querelas do Brasil, que Elis Regina interpretou cantando “…Tinhorão, urutu, sucuri, Ujobim..” Para Blanc, entretanto, Tinhorão era sinônimo de polêmica enriquecedora. “Sua obra crítica e histórica engrandecem nossa cultura”, escreveu o autor de O Bêbado e a Equilibrista, também parceria entre Blanc e o mineiro Bosco. “Eu não só respeito o Tinhorão. Também o admiro muito”.

Bastante apreciada em jardinagem, a tinhorão (ou caládio e coração-de-jesus) deu o apelido ao crítico santista
PLANTA TÓXICA
O sobrenome famoso, Tinhorão, deriva de um dos nomes populares da planta homônima Caladium bicolor, vegetal bulboso da família das Aráceas considerado tóxico, mas muito apreciado em jardinagem devido à suas folhas ornamentais grandes, rajadas ou pintalgadas, com duas ou mais cores e tonalidades de branco, verde, rosa ou vermelho, com floração predominante no verão. O tinhorão também é conhecido por caládio, tajá, taiá e coração-de-jesus.
Fazendo alusão a esta planta, o produtor musical Hermínio Bello de Carvalho e Tom Jobim, em entrevista concedida no ano de 1974, devolveram críticas ao jornalista feitas a um bolachão que Carvalho gravara como cantor para a Odeon. Ambos declararam que viam o desafeto apenas como uma planta herbácea que costumavam “regar diariamente com as próprias urinas”.
Controvérsias à parte, o que Tinhorão sempre defendeu com paixão, na verdade, inclusive durante os anos de chumbo, era que a música brasileira não fosse tratada como mercadoria, desvalorizada por elementos “gringos” avessos à nossa cultura ou mero trampolim de artistas de ocasião que, incorporando modismos, usam-na apenas para enriquecer ou impulsionar carreiras duvidosas — vamos combinar, algo ainda corriqueiro nos dias atuais! — sem levarem em consideração a sua força como manifestação e arcabouço de identidades das tradições que ainda resistem pelo país, mas a mídia e o mainstream desprezam e depauperam.
PRESO POR TER CÃO…
Sobre este traço do perfil do jornalista, a doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Luisa Quarti Lamarão em 2010 escreveu no artigo O veneno de Tinhorão: reflexões sobre a coluna Música Popular (1974-1982) — redigido como uma adaptação de sua teoria de Mestrado, de 2008 — que Tinhorão “(…) convicto em sua postura marxista, enxergava a cultura como reflexo da sociedade de classes. As teses de Marx eram usadas por ele como elemento propulsor da cultura popular (operária/camponesa) – esta representando a ‘autenticidade’ do Brasil. A luta se daria no campo cultural: as armas seriam a cultura regional intocada, como um escudo contra valores externos, que estariam deturpando o país.”
Luisa Lamarão também escreveu que, ao seguir os princípios do materialismo histórico, Tinhorão “denunciava a alienação das classes dominantes” – que englobavam, na opinião dele, grupos de classe média em oposição ao poder militar– e enaltecia valores das classes populares. “Esta atitude lhe valeu uma desconfortável posição de alvo de crítica das duas forças em choque: segundo Tinhorão, esquerda e direita desconfiavam de seu nacionalismo, que remetia apenas às virtudes de camadas que ambas se acostumaram a situar fora da História”, observou Luisa Lamarão.
RARIDADES EM 78 ROTAÇÕES
Tinhorão se aposentou das redações no começo dos anos 1990, pouco tempo depois de integrar o time do lendário e combativo Pasquim, até 1989. Fora da imprensa, investiu o tempo em pesquisas históricas e à produção dos livros. Concluiu pós-graduação em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), em 1999, e da dissertação nasceu A imprensa carnavalesca no Brasil: um panorama da linguagem cômica, editado em 2000.
Dos seus 93 anos, Tinhorão passou mais de 40 juntando raridades em suas coleções, segundo o IMS. Os itens mais variados (discos, livros, fotografias, folhetos, periódicos etc.) se complementam e ajudam a contar a história de fatos e personagens da música popular. No apartamento em que morava não conseguia mais abrigar pilhas e pilhas de documentos, então, em 2001, vendeu o acervo ao Instituto Moreira Salles. Na sede paulista do instituto, a Coleção Tinhorão começou a ser trabalhada com a digitalização dos discos de 78 rotações e a catalogação dos livros. Em fevereiro de 2010, a coleção foi transferida para o IMS carioca, na Gávea.
O acervo e o legado de Tinhorão acumulados ao longo de décadas, portanto, vão muito além da discoteca formada pelos aproximadamente 10 mil itens e de suas brigas com músicos e compositores. O que ele chamava de “conjunto de informações de caráter urbano, com enfoque histórico-sociológico”, tem robustez indispensável aos estudiosos da evolução da cultura urbana brasileira em geral, e não apenas da música popular, posto que inclui fotos, filmes, scripts de rádio, programas de cinema e teatro, cartazes, jornais, revistas, rolos de pianola, folhetos de cordel, press-releases de gravadoras e uma biblioteca especializada em obras sobre música, que abrange também ficção, crônica e memórias, além de 11 coleções de suplementos literários de jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo, publicados a partir da década de 1940.
Completam o acervo fitas de áudio com depoimentos de personalidades, gravações de palestras e programas de televisão dos quais o próprio Tinhorão participou. No quadro geral, o período histórico coberto vai da segunda metade do século XIX ao final do século XX. A discoteca é formada por cerca de 6 mil discos de 78 RPM (gravados e lançados no mercado fonográfico entre 1902 e 1964), e por 1 mil discos de 33 RPM. Abarca todos os ciclos e movimentos da música popular brasileira no século XX, com algumas de suas peças mais valiosas, pela raridade, concentradas no período do nascimento do samba.
No dia 13 de abril de 2010, a Reserva Técnica Musical do IMS inaugurou uma exposição dos itens raros do acervo, com a curadoria do próprio Tinhorão – que, aos 82 anos na ocasião, trabalhou com a vitalidade de sempre. No mesmo dia foram lançados três livros (com a presença dos autores): A música popular que surge na era da revolução e Crítica cheia de graça (ambos de autoria de J. R. Tinhorão) e a biografia Tinhorão, o legendário, escrita pela jornalista Elizabeth Lorenzotti.

O professor de História da MPB na USP, Ivan Vilela, aponta entre as virtudes de Tinhorão ter redesenhado o modo de se contar e de se entender a história da música popular no Brasil. (Foto: Marcos Santos/USP imagens)
CAMINHO DE INFLUÊNCIAS BENÉFICAS
Ivan Vilela, pesquisador, violeiro e professor de História da Música Popular Brasileira da Faculdade de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo escreveu para o Barulho d’água Música o texto abaixo sobre José Ramos Tinhorão:
“O Tinhorão foi o primeiro musicólogo a utilizar o materialismo histórico como ferramenta para estudar a música no Brasil. Desta forma, diferentemente de todos os outros musicólogos que o antecederam, construiu uma narrativa onde a música era produto de uma história social, e não algo descolado da sociedade que a produzia, como ainda é ensinada a música clássica na maioria das escolas do país.
Como todos, Tinhorão teve, sim, alguns tropeços ao não reconhecer na bossa-nova um resgate do samba em seus aspectos mais típicos, bem como uma grande força de renovação estética da MPB e não propriamente apenas uma abertura à música estadunidense. Esta, na realidade, deixou muito mais marcas no samba-canção a ponto de transformá-lo em sua estrutura formal, e por que não pensarmos também que estas influências podem ter sido benéficas, como realmente penso que foram?
Tinhorão redesenhou a maneira de se contar e de se entender a história da música popular no Brasil. Deixa um legado imenso, sobretudo por ter aberto um caminho onde todos que vieram depois dele puderam trilhar.”
¹ Tinhorão virou personagem do escritor Nelson Rodrigues, que, entre agosto de 1959 e fevereiro de 1960, publicou, na Última Hora, o folhetim Asfalto selvagem. O Tinhorão imaginado por Rodrigues era, nas palavras de Ruy Castro – biógrafo do dramaturgo –, “um jovem sátiro a bordo de um calhambeque e mantendo um caderninho onde anotava os nomes de suas conquistas”: moças que ele iludia com a promessa de se tornarem capa da revista O Cruzeiro – e entre elas estava a jovem Silene, filha da protagonista Engraçadinha, personagem de Nelson Rodrigues.