Bolachão foi gravado ao vivo na cidade do Rio de Janeiro, em clima tenso, com tropas dentro e fora do MAM e ficou seis anos “recolhido” até finalmente ser lançado em 1979, intercalando músicas e os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, naquele dia, completava 25 anos
Com o blogue Criatura de Sebo e Jornal GGN
O Barulho d’água Música retoma a série Clássico do Mês para nesta mais nova atualização antecipar a comemoração do aniversário de 45 anos, que ocorrerá em 10 de dezembro, do álbum O Banquete dos Mendigos, gravado ao vivo, em 1973, no Museu de Arte Moderna (MAM), na cidade do Rio de Janeiro. E por que antecipar a matéria sobre este emblemático disco? Para recordar nestes tempos em que há nuvens sombrias pairando sobre os valores e as instituições que promovem a democracia, o respeito e amor ao próximo, que o show que resultou na gravação do projeto dirigido por Jards Macalé comemorava, naquela ocasião, os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas também tinha a função de chamar a atenção da população brasileira para a violação, em larga escala e sob aplicação de intensa violência, de direitos civis pelos militares que estavam no poder. Após a Comissão Nacional da Verdade, recentemente, entregar seu relatório oficial sobre as barbaridades cometidas em nome do Estado nos anos de chumbo, cobrou-se a punição aos crimes da ditadura, o fim de seus “entulhos” — resquícios como os “autos de resistência”, que ceifam a vida da juventude negra nas periferias do país, a perseguição às minorias que formam o segmento LGBT, aos partidários de setores mais à esquerda do espectro político — que candidatos durante as mais recentes eleições voltaram a demonizar, atribuindo a adversários socialistas, por exemplo, pechas e rótulos que não só os desumanizam, como os transformam em “monstros”, trazendo das trevas, por exemplo, a ridícula crença de que “comunistas” são por si só homens maus e que estes “comem criancinhas”, como se dizia naquela época na qual as “fake news” já estavam por ai.
O show O Banquete dos Mendigos foi concebido e produzido por Jards Macalé, mesmo com o MAM cercado pela Polícia do Exército e com a ronda por policiais à mesa de som — intimidações que, a propósito, não amedrontaram o público, que lotou o evento, nem os organizadores. O disco, entretanto, barrado pela censura instituída, não chegou a ser distribuído às lojas imediatamente, pois, ao contrário, “recolhido”, acabou liberado apenas em 1979, quando, enfim, foi lançado, no momento em que o país já estava mergulhado em ondas democratizantes e se bradava por anistia ampla, geral e irrestrita, trazendo de volta ao Brasil centenas de opositores ao governo fardado que se encontravam exilados. Vale a pena destacar ainda que a imprensa — embora nunca tenha deixado sua vocação para ser “chapa branca”, como ainda hoje pratica e se comporta– também se encontrava amordaçada e mesmo os veículos mais combativos se calaram, assim o álbum acabou “fora de circulação” por seis anos.
Em O Banquete dos Mendigos muitos dos grandes ícones da música brasileira até hoje respeitados estão presentes com suas performances intercaladas pela leitura dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, feita por Ivan Junqueira. Algumas curiosidades valem ser destacadas, como a interpretação blues/sanguinária de Abundantemente Morte feita pelo iniciante e, agora, saudoso Luiz Melodia, ou P.F., apresentada pelo Grupo Soma — cujo flautista era um tal que viria a ser conhecido como cantor pop, Ritchie (de Menina Veneno), nos anos da década de 1980.
No dia 10 de dezembro de 1973, no auge do regime militar no país, portanto, o cantor e compositor carioca e um coletivo de artistas ousaram “peitar” as baionetas. E Macalé levou para o MAM entre outros Chico Buarque, Paulinho da Viola, Gal Costa, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Jorge Mautner, Dominguinhos, Johnny Alf, Edu Lobo e nosso inesquecível Raul Maluco Beleza Seixas para cantar as músicas intercaladas à leitura dos artigos, obviamente, sobre clima tenso; o jogador Afonsinho estava na plateia.
Passado o hiato de seis anos, O Banquete dos Mendigos virou ícone clássico, mais do que álbum, um documento contra a opressão e a desigualdade em toda e qualquer forma de manifestação ou de se fazer presente; a capa, por si só, já poderia ser considerada polêmica, pois é uma clara alusão à Santa Ceia entre Jesus e seus apóstolos horas antes de O Nazareno ser entregue aos romanos; há cinco anos, para marcar os 40 anos do LP, Macalé recebeu convidados em duas noites de apresentações na unidade Vila Mariana do Sesc, em São Paulo. Pelo palco passaram Zeca Baleiro, Walter Franco, Thaís Gulin e Mautner.
Papo reto e inquietude
Macao, como Macalé é conhecido entre os parças, ainda está por ai, ativo, soltando seus petardos e gravando sem fazer concessões; os fonogramas de O Banquete dos Signos foram reaproveitados em 2015 pelo selo Discobertas, que o relançaram no mercado, agora em uma caixa com três CDs contendo a obra completa. Macalé é de batismo Jards Anet da Silva, como está apontado em sua página eletrônica “um artista sem par na música brasileira”, de obra rica, solo ou em parcerias, que tem trânsito livre e é bem recebido por todos os setores da arte, oh sangue-bom! Muitos adjetivos se repetem quando o papo é sobre Jards: “maldito”, moderno, irreverente, inquieto, sedutor. O fato é que ele é um dos caras mais genuínos que a música brasileira já produziu. E, portanto, não foi à toa que o grande sambista Moreira da Silva lhe passou o chapéu, em sinal de respeito, ao ver no músico um herdeiro de seu humor e de seus breques.
Não foi por acaso, também, que as novas gerações viram nele exemplo de independência e originalidade, duas de suas maiores virtudes como artista. Ainda em 1969, Jards Macalé subiu ao palco do Maracanãzinho, no IV Festival Internacional da Canção, para cantar Gotham City, subvertendo a ordem musical, cênica e comportamental no seu limite: ele fez um ‘happening’, tão em voga na época, sem precedentes. Misturou cinema, história em quadrinhos, teatro, música, artes plásticas e poesia. O que muita gente não compreendeu é que Macalé estava sendo mais Macalé que nunca.
Aluno do maestro Guerra-Peixe, Jards substituiu o violonista Roberto Nascimento no mítico show Opinião, em 1965. Em pouco tempo se tornou arranjador e músico dos baianos Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. Pouco tempo depois, já em seu exílio londrino, Caetano solicitou sua presença para produzir, fazer a direção musical, arranjar e tocar em seu disco Transa, um marco da carreira do baiano. Antes disso, em 1969, Macalé já tinha lançado seu primeiro compacto duplo Só Morto, um disco impactante com canções ousadas como a música-título, além de Sem essa, Soluços e O crime.
Mas a vida de músico profissional não era suficiente para seus múltiplos talentos, para sua inquietude artística. Por conta disso, sempre teve um canal aberto para as diferentes formas de arte. Do amigo Helio Oiticica ganhou o penetrável Macaléia; Nelson Pereira dos Santos o transformou em ator em Amuleto de Ogum; Macao ainda fez a esmerada trilha sonora do filme; já o poeta Waly Salomão tornou-se seu grande parceiro em obras-primas como Vapor barato, Mal secreto, Anjo Exterminado.
Outros parceiros como Capinam (Movimento dos barcos), Torquato Neto (Let’s play that) e Duda Machado (Hotel das estrelas) reforçam a versatilidade do compositor. Assim, a obra de Jards Macalé, além das suas originalíssimas interpretações, ganhou cores nas vozes de uma infinidade de expoentes como Nara Leão, Elizeth Cardoso, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto, Frejat, Luiz Melodia e outros.
Além do relançamento em vinil, em 2012, de seu primeiro álbum (Jards Macalé), de 1972, em 2016 foi lançada uma caixa com quatro de seus primeiros discos, também pelo selo Discobertas – o já citado Jards Macalé (1972) e Aprender a nadar (1974), além de duas compilações de fonogramas raros e inéditos. Em 2015, o artista também gravou seu primeiro DVD ao vivo, dirigido pela cineasta Rejane Zilles, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre (RS). A obra teve a participação de Luiz Melodia, Zeca Baleiro, entre outros. O registro apresenta Macalé com sua vigorosa banda, formada por seis jovens músicos: Anderson Ferraz (trompete), Thiago Queiroz (sax e flautas), Victor Gottardi (guitarra), Ricardo Rito (teclados), Thomas Harres (bateria e percussão) e Pedro Dantas (contrabaixo).

Jards Macalé, artista cultuado não apenas pela sua colaboração à música brasileira, é personagem de vários cults do cinema nacional e inspirou pintores como Helio Oiticica (Foto Dulce Helfer)
Jards também teve sua vida e obra retratada nos filmes Jards Macalé – Um morcego na porta principal, de João Pimentel e Marco Abujamra, de 2008, e Jards, de Eryk Rocha, de 2012, ambos premiados no Festival do Rio, além do curta Tira os óculos e recolhe o homem, de André Sampaio. Recentemente, Macalé atuou em Big jato, de Claudio Assis, e compôs também a música que encerra o filme, em parceria com o DJ Dolores.
Agenda em Beagá e Sampa
Jards Macalé estará em Belo Horizonte (MG) no domingo, 4 de novembro, como uma das atrações do V Festival da Mostra Cantautores, no Cine Theatro Brasil Vallourec, a partir das 19h30. Já nos dias 9 e 10 quem o receberá será a Casa de Francisca, em São Paulo.
Leia a Declaração Universal dos Direitos Humanos clicando no linque abaixo::
https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm
Faixas de O Banquete dos Mendigos:
Disco 1:
01. Introdução; Artigo 1º da Declaração Universal Dos Direitos Humanos – Ivan Junqueira
02. No Pagode Do Vavá (Paulinho da Viola) – Paulinho Da Viola
03. Roendo as Unhas (Paulinho da Viola – Paulinho Da Viola
04. Percussão; Artigos 2º E 3º – Pedro Dos Santos
05. Artigo 5º – Ivan Junqueira
06. Samba Dos Animais (Jorge Mautner) – Jorge Mautner & Nelson Jacobina
07. Artigos 6º e 8º – Ivan Junqueira
08. Pra Dizer Adeus (Edu Lobo & Torquato Neto) – Edu Lobo & Danilo Caymmi
09. Artigo 9º – Ivan Junqueira
10. Viola Fora De Moda (Edu Lobo & Capinam) – Edu Lobo
11. Palavras (Gonzaguinha) – Gonzaguinha
12. Artigos 11º e 12º – Ivan Junqueira
13. Eu E a Brisa (Johnny Alf) – Johnny Alf
14. Artigos 13º e 14º – Ivan Junqueira
Disco 2:
15. Ilusão à Toa (Johnny Alf) – Johnny Alf
16. Cachorro Urubu (Paulo Coelho & Raul Seixas) – Raul Seixas
17. Artigo 18º – Ivan Junqueira
18. P.F. (Shields & Bruce) – Grupo Soma
19. Artigo 19º – Ivan Junqueira
20. Nanã Das Águas (Geraldo Carneiro & João Donato) – Edson Machado ; Art. 20º E 21º
21. Pesadelo (Maurício Tapajós & Paulo César Pinheiro) / Quando O Carnaval Chegar (Chico Buarque) / Bom Conselho (Chico Buarque) – MPB4 & Chico Buarque
22. Jorge Maravilha (Chico Buarque) – MPB4 & Chico Buarque
23. Abundantemente Morte (Luiz Melodia) – Luiz Melodia
24. Artigo 23º a – Ivan Junqueira
25. Cais (Milton Nascimento & Ronaldo Bastos) – Milton Nascimento & Toninho Horta
26. Artigo 23º b – Ivan Junqueira
27. A Felicidade (Vinicius de Moraes & Tom Jobim) – Milton Nascimento
28. Anjo Exterminado (Jards Macalé & Waly Salomão) – Jards Macalé
29. Rua Real Grandeza (Jards Macalé & Waly Salomão) – Jards Macalé; Art. 23º c
30. Asa Branca (Humberto Teixeira & Luiz Gonzaga) – Dominguinhos
31. Lamento Sertanejo (Dominguinhos & Gilberto Gil) – Dominguinhos
32. Artigo 30º – Ivan Junqueira
33. Oração De Mãe Menininha (Dorival Caymmi) – Gal Costa
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