1181 – Série “Clássico do Mês” volta a Pernambuco, berço do Ave Sangria

Passados 45 anos do emblemático álbum de estreia, grupo está de novo na estrada para lançar Vendavais, para o qual está promovendo uma vaquinha virtual e será atração em três shows em unidades paulistanas do Sesc, já disponível em plataformas de streaming

O Barulho d’água Música retoma nesta atualização a série Clássico do Mês dedicando-o ao disco Ave Sangria, único por enquanto gravado comercialmente pela homônima banda pernambucana, do Recife, em 1974. O grupo  Ave Sangria à época reunia por Marco Polo (vocais), Ivson Wanderley, o Ivinho, (guitarra solo e violão), Paulo Raphael (guitarra base, sintetizador, violão, vocal), Almir de Oliveira (baixo), Israel Semente (bateria) e Agrício Noya (percussão) e para este lendário álbum de 12 faixas levou ainda aos estúdios Zé Rodrix (Cidade Grande, com sintetizador) e Márcio Vip (Momento na praça, ao piano; Por que?, ao órgão; e Dois Navegantes, ao sintetizador).

O Ave Sangria é até hoje por conta deste disco considerado um ícone do rock brasileiro setentista e sempre vem muito bem classificado entre as melhores bandas que adotaram os estilos da psicodelia e do rock progressivo. Boa parte dos exemplares do Ave Sangria também foi levada pelas águas de uma enchente de trágicas proporções do Rio Capiberibe em 1975 ¹ que entre outras consequências carregou todo o lote da joia rara de Lula Côrtes e Zé Ramalho, o Paêbiru. O álbum do Ave Sangria, entretanto, felizmente ganhou nova prensagem em 1990 e, com impulso que a internet deu trazendo à baila materiais guardados em gavetas obscuras do tempo, não só foi reeditado em 2014, como impulsionou releituras promovidas pelo grupo, em vinil e à laser.

O texto abaixo, reproduzido do blogue Criatura de Sebo, que o “puxou” da Wikipedia e o publicou na véspera do Natal de 2015, ilustra um retrato perfeito do Ave Sangria:

“Eles usavam batom, beijavam-se na boca em pleno palco, faziam uma música suja, com letras falando de piratas, moças mortas no cio. E eram muito esquisitos; “frangos”, segundo uns, e uma ameaça às moças donzelas da cidade, conforme outros. Estes “maus elementos” faziam parte do Ave Sangria, ex-Tamarineira Village, banda que escandalizou a Recife de 1974, da mesma forma que os Rolling Stones a Londres de dez anos antes. Com efeito, ela era conhecida como os Stones do Nordeste.


“Isto era tudo parte da lenda em torno do Ave Sangria” – explica, 25 anos depois, Rafles, o ministro da informação do grupo. “O baton era mertiolate, que a gente usava para chocar. Não sei de onde surgiu esta história de beijo na boca, a única coisa diferente na turma eram os cabelos e as roupas.”

Rafles, por volta de 68, era o “pirado” de plantão do Recife. Entre suas maluquices está a de enviar, pelo correio, um reforçado baseado, em legítimo papel Colomy, para Paul McCartney. Meses depois, ele recebeu a resposta do Beatle: uma foto autografada como agradecimento.

Foi Rafles quem propôs o nome Tamarineira Village, quando o grupo tomou uma forma definitiva, com a entrada do cantor e letrista Marco Polo. Isto aconteceu depois da I Feira Experimental de Música de Fazenda Nova³. Até então, sem nome definido, Almir Oliveira, Lula Martins, Disraeli, Bira, Aparício Meu Amor (sic), Rafles, Tadeu, e Ivson Wanderley eram apenas a banda de apoio de Laílson, hoje cartunista do DP.

Marco Polo, um ex-acadêmico de Direito, foi precoce integrante da geração 65 de poetas recifenses. Com 16 anos, atreveu-se a mostrar seus poemas a Ariano Suassuna e a Cesar Leal. Foi aprovado pelos dois e lançou seu primeiro livro, em 66. Em 69, iniciou-se no Jornalismo, como repórter do Diário da Noite. Logo ganhou mundo. Em 70, trabalhou por algum tempo no Jornal da Tarde, em São Paulo, mas logo virou hippie, trabalhando como artesão na desbundada praça General Osório, em Ipanema, na cidade do Rio de Janeiro.

O primeiro show como Tamarineira Village foi o Fora da Paisagem, depois do festival de Fazenda Nova. Vieram mais dois outros shows, Coro em Chamas e Concerto Marginal. A partir daí a banda amealhou um público fiel.” 

DO ROMANTISMO À AGRESSIVIDADE

A jornalista Camila Holanda (@camilasholanda) em texto publicado em 4 de outubro de 2011 no blogue Discografia, do Jornal O Povo, de Recife, escolheu para o título daquela postagem “Ave Sangria: um escândalo psicodélico pernambucano” por que, segundo a autora, o

Ave Sangria escandalizou, incomodou e encantou Recife, em 1974, com letras que iam do romantismo à agressividade de uma moça carniceira. Os integrantes da banda usavam mertiolate nos lábios para chocar o público. Conseguiram.

A profusão de melodias e sentimentos produzidos pela psicodelia do grupo pernambucano é valiosa para a música brasileira. Aliás, os artistas do movimento Udigruidi, na década dos anos de 1970, são de extrema relevância, devido à irreverência e ao estilo prafrentex da turma. Zé Ramalho, Lula Côrtes, Alceu Valença e Marconi Notaro são alguns contemporâneos do Ave Sangria no movimento cultural.

No primeiro e único disco do grupo formado por Marco Polo, Almir de Oliveira, Ivson Wanderley, Agrício Noya, Israel Semente e Paulo Raphael, vê-se o desatino de jovens inquietos que viviam em um Brasil paradoxal: de um lado, a contracultura, do outro, a ditadura. Ir contra os padrões fazia a cabeça deles. Ave Sangria também foi alvo das censuras do governo militar. A ilustração da capa do único disco da banda foi submetida a modificações, depois, definida pelos integrantes como sendo um papagaio drag queen. Após esse trabalho, feito sob vários problemas, a banda voltaria com o show Perfumes & Baratchos, que acabou servindo como uma despedida da curta carreira. Cinco anos depois, o guitarrista Ivinho seria o primeiro brasileiro a tocar no lendário Festival de jazz de Montreux, na mesma noite em que Gilberto Gil tocaria ao lado de Pepeu Gomes. Acompanhado somente pelo violão de sete cordas, ele improvisou cinco temas na hora que ficaram registrados em disco.

Destaques musicais

Dois navegantes é a primeira faixa do disco lançado em 1974, com produção do ex-Jovem Guarda Marcio Antonucci, e que hoje ganhou ares míticos. Uma viagem de sinestesia. “Só deixes o vento que solta teus cabelos, espelhos dos meus”. Se o ouvinte deixar-se levar um pouco, sentirá até a maresia que sai da canção Dois navegantes. Pulando para O Pirata, quarta composição, baixo, guitarra, percussão, bateria e letra encaixam-se em uma sincronia que dá vida à música. Seu Valdir é para curtir a dor de cotovelo de forma animada [a música foi censurada pela ditadura²]. Por que tem um diferencial: o triângulo embalado por Agrício Noy. Sem dúvidas, Geórgia, a carniceira é a música que mais incomoda, quando fala: “Geórgia, a carniceira dos pântanos frios, das noites do Deus Satã, jogando boliche com as cabeças das moças mortas de cio. No levantar das manhãs de abril”. Ademais, todo o disco merece atenção especial: letras, melodias e arranjos são despojados e alinhados, em sintonia com o paradoxo de tudo o que envolvia Ave Sangria.”

A lendária e polêmica capa do único disco do Ave Sangria trazia uma ave surreal, que segundo seus membros seria um papagaio drag queen

O portal Eu Ovo tem uma publicação de 29 de novembro de 2009, Mais da Psicodelia Nordestina, na qual oferece para serem baixados 11 títulos desta temática, incluindo o Ave Sangria, o Perfumes & Baratchos (Ao Vivo), também de 1974 e do Ave Sangria, e do discaço que Ivinho gravou ao vivo em Montreux (Suíça), em 1979. Lamentamos informar que nenhum dos linques encontra-se ativo, mas a introdução da postagem dá uma ideia bem clara e legal dos recados e da estética que aquela galera (que contava ainda com Zé Ramalho, Robertinho do Recife, Geraldo Azevedo e Alceu Valença, além de Flaviola e o Bando do Sol e Zé da Flauta & Paulo Rafael, entre outros expoentes) tinha para dar e mostrar ao Sul/Sudeste Maravilha.

EM SAMPA E EM JUNDIAÍ

Com nova formação, 45 anos depois do sucesso do seu emblemático álbum único, o Ave Sangria será atração da unidade paulistana do Sesc Interlagos na quarta-feira, 1º de maio, Dia Mundial do Trabalhador. A partir das 16 horas, Marco Polo (vocal), Almir de Oliveira(guitarra/violão/vocal), Paulo Rafael guitarra/viola), Juliano Holanda (baixo/vocal), Gilu Amaral (percussões) e Júnior do Jarro (bateria/vocal) vão apresentar as faixas de Vendavais, do mais recente disco da banda, só com inéditas, que os públicos das unidades Jundiaí e Pompeia poderão também conferir na quinta-feira, 2, e no sábado, 4, respectivamente às 20 horas e às 21h30.

Vendavais ainda não foi gravado: o grupo, para tanto, está com vaquinha virtual aberta na plataforma Catarse para tentar tirá-lo do papel. Faltam pouco mais de 40 dias para a campanha acabar e dos R$ 31.640 necessários para cobrir o orçamento, até a tarde do sábado, 27 de abril, 152 pessoas já haviam depositado R$ 19.091,00. Para quem estiver a fim de dar uma força, o endereço do crowdfunding é https://www.catarse.me/ave_sangria

“Esse repertório persegue as características recorrentes do grupo, indo do divertimento escrachado à morbidez de temas sombrios, da crítica social implacável ao mais delirante psicodelismo e da agressividade dos rocks pesados ao lirismo acústico das baladas”,

Ivinho partiu antes do combinado em 2012. O guitarrista do Ave Sangria é também um dos melhores do país e gravou um álbum lendário, ao vivo, em Montreux

declarou Marco Polo ao jornalista Mauro Ferreira, do blogue do portal G1 Pop&Arte. Marco Polo forma o trio sobre o qual se assenta atualmente o Ave Sangria ao lado de Paulo Rafael e Almir Oliveira. Ivinho morreu em junho de 2015, aos 62 anos.


¹ Entre os dias 17 e 18 de julho de 1975, a cidade do Recife viveu a maior catástrofe natural da sua história: o transbordamento do rio Capibaribe atingiu 31 bairros e alagou 80% da superfície da cidade (vide foto) – 350 mil pessoas foram desalojadas de suas casas e, tragicamente, 104 pessoas morreram. As fortes enchentes também atingiram outros 25 municípios da bacia hidrográfica do rio Capibaribe. Esta não foi nem a primeira, nem a última grande enchente do rio Capibaribe, mas sem dúvida é uma das mais trágicas da história. (Fonte: https://ferdinandodesousa.com/2017/09/18/as-grandes-enchentes-do-rio-capibaribe/)

²Nos anos 1970, a simples desconfiança de que uma música fazia “apologia à homossexualidade” foi o suficiente para retirar do mercado – via censura oficial – o disco de uma jovem e promissora banda pernambucana de rock. O caso aconteceu com o sexteto Ave Sangria. Em 1974, o grupo lançou seu primeiro LP, que continha entre as faixas a canção Seu Waldir.

Na letra, o vocalista Marco Polo canta Seu Waldir, o senhor magoou meu coração” e relata a história de um amor não correspondido. “Sei que o senhor está gamadão em mim. Eu quero ser o seu brinquedo favorito. Seu apito, sua camisa de cetim”.

Não é raro compositores interpretarem papéis do outro sexo em suas composições. Chico Buarque, por exemplo, é conhecido por entender a alma feminina justamente por algumas de suas canções serem cantadas do ponto de vista de uma mulher.

Seu Waldir não teve a mesma sorte. Em entrevista ao jornalista pernambucano José Teles, autor do livro Do frevo ao manguebeat, Marco Polo contou a história da música. “Eu fiz Seu Waldir no Rio, antes de entrar na banda. Ela foi encomendada por Marília Pera para a trilha da peça A vida escrachada de Baby Stomponato, de Bráulio Pedroso, que acabou não aproveitando a música”. Como Seu Waldir fez relativo sucesso no rádio naquele ano, acabou chamando a atenção. E muita gente não gostou do que ouviu.

O Departamento de Censura da Polícia Federal não acreditou na explicação de Marco Polo, o LP foi proibido e os exemplares que ainda não tinham sido vendidos foram recolhidos das lojas. O LP do Ave Sangria foi relançado sem Seu Waldir. Em 1981, Ney Matogrosso relançou a música como lado B do compacto simples Folia no matagal.  (Fonte: http://www.brasil.gov.br/noticias/cultura/2015/06/censuraram-seu-waldir)

³ Feira Experimental de Música de Nova Jerusalém, ou simplesmente Feira Experimental de Música, foi um festival de música que aconteceu em 11 de novembro de 1972, no teatro de Nova Jerusalémdistrito de Fazenda Nova, município de Brejo da Madre de Deus-PE, que é considerado o Woodstock brasileiro.

Segundo os organizadores, o festival tinha o objetivo de mostrar o trabalho de vários conjuntos musicais fora do âmbito comercial que despontavam em Recife e outras cidades do Nordeste. Com entrada franca, a produção tinha o intuito terminantemente categórico da abertura de um espaço para o pessoal que fazia música alternativa, fora do circuito comercial.

Endereços das unidades Sesc que promoverão apresentações do Ave Sangria:

Interlagos: Avenida Manuel Alves Soares, 1100, Parque Colonial, São Paulo, São Paulo, telefone (11) 5662-9500,

Jundiaí: Avenida Antônio Frederico Ozanan, 6600, Jardim Botânico, Jundiaí, São Paulo, telefone (11) 4583-4900

Pompeia: Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo, São Paulo

Próximo Clássico do Mês, em maio:

Roberto Carlos é o décimo terceiro álbum de  estúdio do cantor e compositor Roberto Carlos, lançado em 1971 pela gravadora CBS. Foi considerado pela Rolling Stone Brasil como o 28º maior disco brasileiro.

 

Leia também no Barulho d’água Música:

1170 – Rock, baião e psicodelia fervem no caldeirão de “Paêbiru”, bolachão mais caro da MPB
1160 – “Álibi”, de Maria Bethânia, é o tema de fevereiro da série “Clássico do Mês”
1151 – “Pérola Negra”, álbum de estreia de Luiz Melodia, é o primeiro Clássico do Mês de 2019

 

 
 

3 comentários sobre “1181 – Série “Clássico do Mês” volta a Pernambuco, berço do Ave Sangria

  1. Os amigos esquecem que o Tamarineira Village teve como mentores tres musicos do Recife,Almir de Oliveira,Rafles Oliveira e Marco Polo Guimarães,que convidaram Ivsom Wanderley para tocar guitarras,houve até um nome provisório ( risos)para o quarteto ;Satanás e a santissima trindade,um nome que foi substituido para Tamarineira Village proposto por mim,portanto aqui fica esclarecido quem realmente batizou o grupo com este nome,que depois mais vez foi renovado como Ave Sangria ! Muito grato .

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