1524- Dulce Quental (RJ) exalta o silêncio em Sob o Signo do Amor, um disco de enamoramento e resistência*

#MPB #Rock #Literatura #CulturaPopular

Em seu sexto álbum de estúdio, a compositora carioca convida o ouvinte a mergulhar nas pausas de suas novas canções enquanto vive uma história de amor num mundo que está desabando

*Com Marcelo Costa e Eliane Verbena

 

Silêncio. Dulce Quental tem algo para revelar: “Voltei pra mim / Estou de volta”, ela canta em A Pele do Amor, faixa que acena para John Lennon (Hold On) e também traz o título de seu sexto disco solo, Sob o Signo do Amor (Cafezinho Edições, 2022), primeiro disco de inéditas desde Beleza Roubada (Sony/BMG, 2004). Nesse intervalo, Dulce lançou o vinil Música e Maresia (Discosaoleo/Cafezinho Edições, 2016), resgatando canções “perdidas” gravadas na década dos anos 1990, e o DVD homônimo gravado ao vivo e em parceria com o Canal Brasil, em 2017, além de compor e ser gravada por diversos parceiros.

A espinha dorsal de Sob o Signo do Amor, porém, foi composta num autoexílio involuntário em Angra dos Reis (RJ) refugiada numa casinha rústica à beira mar, em 2020, em meio à pandemia de Covid-19, quando compôs e registrou a maioria das canções no formato violão e voz enquanto dividia o espaço com a natureza, o oceano, o céu, a lua, morcegos, golfinhos, pescadores e tartarugas. São canções novas, frescas, emocionais e repletas de silêncios que convidam o ouvinte a entrar num universo tão pessoal quanto social.

Já fazia um tempo que está matéria estava em minha longa lista das novidades que recebo todo dia e destaco para serem publicadas, pois que o álbum está disponível nas plataformas digitais desde março. Os corres diários adiaram divulgar á época que Sob o Signo do Amor, conforme a própria autora contou, nasceu de um contraponto. “De um lado temos esse estado de terror, a indignação pelo desgoverno Bolsonaro bombardeando as redes sociais com o seu terrorismo e os números de mortes na pandemia aumentando”, contou, sem peias na língua, como é de seus bons costumes. “De outro, a urgência em viver o amor e uma sexualidade aos 60 anos [completados dia 12], rica de enamoramento e erotismo, o desejo de afirmar a própria experiência num mundo que está desabando, apesar de tudo vale a pena apostar nas nossas próprias ficções. A resistência se faz dessas pequenas histórias”, observou, referindo-se às onze pequenas histórias que compõem esse novo trabalho.

O álbum é um atestado da maturidade da diva que despontou no grupo Sempre Livre, nos anos 1980, cantando Eu Sou Free, Esse Seu Jeito Sexy De Ser e Fui Eu. Era o momento em que Lobão deixava Os Ronaldos e Cazuza saia do Barão Vermelho e Dulce acreditou no próprio taco para cravar, ainda, em carreira solo, Natureza Humana (1986), Caleidoscópio (1987) e O Poeta Está Vivo (parceria com Frejat e sucesso do Barão Vermelho em 1990). Rumo aos 40 anos de carreira a serem completados em 2024, hoje ela está muito mais interessada em colaborar com as novas gerações do que viver do passado. Não é à toa que quem assina a produção de Sob o Signo do Amor são os irmãos (da nova geração) Jonas e Pedro Sá.

Dulce Quental faz questão de pontuar: “Esse é um disco feito a seis mãos”. Jonas já lançou três discos elogiados em carreira solo, sendo que o mais recente, Puber (2018), conquistou Dulce, que o conheceu na apresentação de lançamento, e depois, aos poucos, foi estreitando relações. “Jonas é um artista fabuloso. Fiquei impressionada com os multitalentos dele. Aprendi muito com a forma empírica de ele trabalhar. Confiei que ele não ia largar a minha mão e chegaríamos lá, e chegamos”.

Foi Jonas quem trouxe Pedro: ele integrou a BandaCê, que acompanhou Caetano Veloso. É um estudioso da guitarra e lançou em 2021 seu primeiro disco solo. “Pedro é uma pessoa muito musical”, elogiou Dulce, para revelar: “Ele não tem ego nem preconceito. Não julga. Ele tem um interesse genuíno pelo que você tem pra falar, e captura isso”. Juntos, Dulce, Pedro e Jonas fizeram cinco encontros e  quando se deram conta já tinham um disco. “Voz e violão já era uma coisa forte. Esse é um disco de guitarra e voz na frente, com a bateria pequenininha e os barulhinhos de MPC, lá atrás”, informou Dulce, que fez apenas dois pedidos para os irmãos Sá: “Me tirem dos anos 80 e… respeitem as pausas e os silêncios das canções”.

A preocupação de Dulce Quental quanto ao silêncio é genuína, pois vivemos em um período histriônico e verborrágico, em que tudo chega gritado e mastigado para o consumidor, que se vê “livre” de pensar para consumir. Ela, no entanto, quer convidar o ouvinte para refletir sobre esse silêncio ao penetrar nas camadas de suas canções: “Quando você deixa vazio na música, deixa pausa, espaço para o outro, para a escuta e interpretação”.

Sob o Signo do Amor é inspirado, ainda, em leituras do livro Sobrevivência dos Vagalumes, do filósofo e historiador de arte George Didi-Huberman, ao analisar os Escritos Corsários de Pasolini, onde o cineasta italiano antecipa o estrago que a sociedade do espetáculo viria a causar na cultura. E diz não ser mais possível ser inocente e livre diante do terror e da destruição. “Parece hoje”, comentou Dulce. “É uma visão premonitória. Estamos presenciando que não é preciso fazer um golpe de estado para vivermos numa ditadura, basta corromper as instituições. Walter Benjamin e Hannah Arendt também cantaram tudo o que viria a acontecer. Eles previram toda essa destruição. Mas quem diria que iria acontecer tão rápido?”.

 

 

Neste disco, Dulce assina nove composições sozinha (a maioria produzida na casinha em Angra dos Reis, em 2020), divide uma com o pianista pernambucano Zé Manoel (A Arte Não É Uma Jovem Mulher), e outra com o produtor e baterista paraense Arthur Kunz, das bandas Strobo e Os Amantes (Amor Profano). O disco novo também se conecta com Délica, primeiro disco solo de Dulce. lançado em 1986: “Sob o Signo do Amor é um disco que sonhei lá atrás”, revelou. “Délica é uma carta que enviei para o futuro, para mim mesma, uma mensagem que me ajudasse a encontrar o que eu encontrei agora. Esse disco é a realização daquela mensagem. Ela chegou. Tive de retrabalhar essa mensagem, mas ela finalmente chegou”. É o disco mais musical da minha carreira, mais sensorial, num sentido geral. Os tempos estão mais pesados, mas as palavras estão mais leves”,

Como se renovar sem se tornar cinza?

Dulce Quental é mãe, cantora e compositora (não nessa ordem). Cronista em busca da poesia esquecida destes dias perdidos, Dulce (sobre) viveu (a)os anos 1980 e procura uma forma de se renovar sem se tornar cinza. Ela ouve a voz da chuva, acredita no poder do desejo e brinca de amar o cinema, a música e a vida desde que iniciou a carreira como vocalista da banda pop Sempre Livre. A discografia reúne Avião de Combate (1984), Délica (1985), Voz Azul (1988), Dulce Quental (1989), Beleza Roubada (2004) e Música e Maresia (2016), lançado em formato de vinil com gravações realizadas nos anos 1990 e que ganhou especial de TV no Canal Brasil

Dulce Quental é formada em Comunicação Social, colaborou com resenhas de livros para o Caderno Ideias do Jornal do Brasil e artigos para a Revista de Estudos Femininos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ. Destacada compositora, suas canções foram gravadas por expoentes dos mais variados segmentos e ela realizou parcerias com Roberto Frejat, George Israel, Paulinho Moska, Ana Carolina, Zélia Duncan, Toni Garrido, Celso Fonseca, Zé Manoel e Paulo Monarco, entre outros. Como escritora, em 2012 reuniu em um livro as Caleidoscópicas, mais de 40 crônicas escritas para o portal paulista Scream & Yell, que depois virou coluna no iG e seguiu seu caminho pelas ruas da internet. Outra frente de atuação profissional pelo país são palestras, seminários, jornadas literárias e congressos nos quais narra a sua experiência como compositora, autora e pesquisadora das palavras. Trabalha também como profissional de música independente assessorando artistas e prestando serviços para o mercado de música independente.

COMPROMISSO SÓ COM A LIBERDADE

Não é incomum uma artista ficar marcada a ferro pelo seu primeiro sucesso, do qual não consegue se livrar. O modo como Dulce Quental se associou a Eu sou free, no entanto, é bem particular e sutil. Não propriamente pela música de 1984, estourada ainda a bordo do Sempre Livre. Mas pela mensagem subliminar anunciada a cada execução – tantas, tantas – nas rádios. Obra e autoria numa frase só: “Eu sou free, Sempre Livre” Ela se mostrou assim, livre, desde o momento em que aquele grupo só de garotas se desfez.

Dulce enveredou por uma carreira solo de fato autoral, seguindo o próprio nariz. Se isso significou que ela não mais se aproximaria dos patamares comerciais alcançados tão fugazmente pelo Sempre Livre, significou também uma solidez artística que sustenta, trinta anos depois, os três álbuns criados em rápida sequência, antes de um longo hiato: Délica (1986), Voz Azul (1987) e Dulce Quental (1988). O seu lançamento em formato digital nos permite reacessá-los com o benefício de uma perspectiva histórica, não imediatista, e empreender uma reparação que coloca Dulce no seu devido lugar.

Dulce está entre os melhores letristas surgidos no Brasil durante a explosão do rock. Esta não é uma afirmação de pouco peso, levando-se em conta que aquela geração 80 contava, entre outros, com Cazuza, Renato Russo, Arnaldo Antunes, Herbert Vianna e Humberto Gessinger* (ela gravaria composições destes três últimos). A sua produção nos anos de afastamento dos estúdios, só encerrado com o CD Beleza Roubada, de 2004, apenas reconfirmou tal lugar de honra. Entre outras, Dulce assinou Cidade partida, com os membros do grupo Cidade Negra, e O poeta está vivo, com Roberto Frejat, parceiro em quase todas as faixas de seu recém-lançado CD, Música e Maresia.        

Dulce Maria Rossi Quental, carioca de 1960, teve uma trajetória escolar-acadêmica que explica em parte a delicadeza e a densidade de suas letras: estudou saxofone e canto, estudou Ciências Sociais e Filosofia (e, mais tarde, Jornalismo). Musicalmente, uma influência decisiva foi o jazz escutado na infância, nos LPs do pai. Fundindo-o à música popular brasileira e ao rock nacional, ela produziu o que a crítica chamava de new bossa, tanto aqui quanto no exterior, com Everything but the Girl ou Sade. Arthur Dapieve

* Humberto Gessinger é vocalista, baixista, pianista, gaitista, violonista, acordeonista e escritor brasileiro. Era o vocalista e líder da banda gaúcha Engenheiros do Hawaii

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