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*Com Nane Pereira
AfroEu tem três faixas instrumentais, com violão e fugelhorn, arte visual do urbanista, pintor e escultor Jean Tomedi, mais a participação especial do trompetista Bruno Soares
O guitarrista, violonista, produtor musical e diretor artístico Jackson Carlos lançou em todas as plataformas digitais o epê AfroEu, álbum que contém as faixas Saudade, Etéreos e Descendentes, instrumentais, com formação de violão e flugelhorn. O trabalho é inspirado na comunidade quilombola Sertão do Valongo, localizada no litoral de Santa Catarina; Etéreos e Descendentes incluem a participação especial do trompetista Bruno Soares. O processo criativo de AfroEu envolveu em parceria o artista visual, arquiteto e urbanista Jean Tomedi, convidado a produzir três esculturas durante pesquisa e vivência na comunidade quilombola.
Ouça o EP AfroEu: https://spoti.fi/3mRAWMq
“No AfroEu os temas se conectam entre si e soam uma trilogia com texturas e ambiências que remetem a linguagens como a música erudita, o jazz europeu e a música brasileira”, afirmou. “As sonoridades e texturas do epê propõem uma viagem que passeia por diferentes continentes e fazem alusão ao desenvolvimento étnico de povos do mundo.”
Jackson Carlos comentou, ainda, que a trilogia deriva do projeto de pesquisa sobre o vilarejo habitado por remanescentes africanos e seus descendentes, no Sul do Brasil e que revela três níveis de percepção sobre o conhecimento daquele lugar. “A primeira é a do não conhecer. Se aproximando apenas por relatos em matérias de arquivo e mídia, foi se criando, no subjetivo, a dimensão e todo o eco do que poderia existir como realidade naquele ambiente”, explicou Jackson. Desse primeiro estado de percepção, resultou Saudade, que abre AfroEu.
Etéreos é inspirada na sensação de conhecer o desconhecido, do rompimento da expectativa para com a realidade, do calor físico presenciando a ideia do descobrimento. Fruto do impacto de conhecer aquele povo. “Etéreos procura reflexão sobre as gerações ancestrais de todos os povos que se misturam em evolução, trazendo, em cada membro ancestral, raízes de informação, não apenas genética, mas de uma cultura espiritual que transcende os elementos do próprio corpo e da terra, elevando-os ao mais sublime e celeste espaço do universo.”
A trilogia se encerra com Descendentes, composta após a visita ao vilarejo. “Por intermédio da percepção sobre o clima, a arquitetura, a natureza e as pessoas que ali residem e resistem à mistura natural do movimento genealógico característico do povo brasileiro”, disse. “Anciãos que guardam toda a história migratória de um povo que atravessou o Atlântico arrancado de sua cultura original, recebendo novos ares de uma colonização estrangeira; um povo que, apesar das circunstâncias, carrega muita luz no âmago da alma”, completou Jackson. “AfroEu é a viagem entre nossa essência e o externo, levando na mala informações de nossas bases históricas, genéticas e espirituais, a fim de encontrarmos os oásis espalhados pelo universo, trazendo água pura ao retornarmos para nós mesmos, saciando nossa sede por existir e nossa luta por viver”, emendou o guitarrista. “Não só um convite à reflexão sobre o caminho, AfroEu é o reflexo de cada Eu que mora em você.”
“Na mudança de escala, tomando distância, percebi meu caminho por uma outra perspectiva. Este caminho me levou a um mergulho no vazio, passando os contornos da realidade adentrando no abstrato. Percebi que quanto mais procurei fora, mas encontrei dentro”, declarou o artista visual e convidado do projeto Jean Tomedi.
Como contrapartida do projeto, Jackson Carlos e Jean Tomedi farão vivências artísticas na qual pretendem compartilhar o processo de criação das músicas e das obras. A primeira atividade está programada para a segunda-feira, 20de junho, a partir das 15 horas, na Escola Municipal Fidélis Antônio Garcia, em Porto Belo (SC). No dia 21, às 14h30, a dupla estará na Casa de Repouso Aconchego dos Avós, em Blumenau (SC); e, às 18h30, na Universidade Regional de Blumenau (FURB), na Sala R 108. A Secretaria de Educação de Porto Belo receberá como doação duas das três obras de Tomedi.
Jackson Carlos é guitarrista, violonista, produtor musical e diretor artístico que desenvolve pesquisa e estudo sobre jazz e música brasileira. Atua na cena instrumental com grupos de jazz (standard), em formato solo e com seu trio (Jackson Carlos Trio).Para saber mais sobre o músico, visite www.instagram.com/jacksoncarlosmusic
Jean Tomedi, arquiteto e urbanista, é formado pela FURB, além de muralista, pintor e escultor. AfroEu foi contemplado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Apoio à Cultura (2020), executado com recursos do Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura.
Leia a seguir, na íntegra, “Comunidade no Sertão do Valongo, em Porto Belo, guarda memórias dos tempos da escravidão (Descendentes dos escravos ainda mantêm alguns costumes dos antepassados, principalmente na agricultura e na culinária”), texto de Brunela Morais, jornalista de Porto Belo, publicado no portal eletrônico ND+, em 13 de maio de 2017
“De chapéu de palha, sentado no degrau de acesso à pequena cozinha, Gonçal Marinho Caetano, 86, saboreava uma bergamota colhida no quintal da casa, localizada no Sertão do Valongo, comunidade quilombola de Porto Belo, no Litoral Norte [de Santa Catarina]. Enquanto as cascas se amontoavam no chão, ele mastigava as gomas sem nenhuma pressa e relutava em falar do passado. “Seu Neném”, como é chamado, tem no sangue a força do povo escravo, que chegou ao local no século XIX. O “Quilombo do Valongo” é um dos onze refúgios de escravos reconhecidos pela Fundação Cultura Palmares em Santa Catarina.
Apesar de não ter apanhado nos troncos ou ter sofrido nas senzalas, o idoso de fala mansa guarda memórias repassadas de geração a geração. “Meus bisavôs foram escravos. Naquele tempo eram judiados, sofriam. Eu não fui, só herdei o sofrimento. A vida difícil acompanhou eles. Depois as dificuldades ficaram. Cheguei a tirar da minha boca para alimentar os meus filhos. Tenho seis aqui e outros dois no cemitério junto com minha esposa”, revela
Com o olhar distante, Neném lembra dos anos de serviço braçal para levantar dinheiro e que naquela época o pouco recebido quase nada valia. Mas de trocado em trocado, ele conseguiu alimentar a família. As oito crianças foram criadas na roça com a venda de lenha na cidade de Tijucas [SC]. O percurso, feito a mão pelos escravos, era percorrido em carro de boi. “Seguia para beira do rio para vender. Depois voltada e trabalhava na lavoura”, comenta. Além da madeira tudo o que ele sabe de agricultura foi ensinado pelos avós e pelos bisavôs, que vieram para a região como escravos.
Como a vida toda trabalhou muito e ganhou pouco, o luxo na pequena casa de seu Neném, mesmo nos dias de hoje, é ter comida na mesa. Viúvo há 40 anos, prepara sozinho o que come, cuida das plantas, faz orações e ouve hinos religiosos no velho rádio. “Sou negro, carrego sangue de escravo, mas não tenho orgulho disso. Deus quis assim, desse jeito. Herdei a força deles, isso não nego.”.
PRECONCEITO OPRIMIU A COMUNIDADE
A comunidade do Sertão do Valongo faz divisa com a cidade de Tijucas e por lá o contraste social é claro. Ao contrário do glamour das praias vizinhas de Itapema e Balneário Camboriú, no “Sertão dos Pretos”, como já foi chamado, o trânsito ainda é de carros de boi e a tranquilidade impera. Casas de madeira misturam-se à imensidão verde das montanhas e pastos. Há energia elétrica e água encanada, mas faltam serviços e praticamente não há comércio.
Segundo moradores, o Valongo surgiu quando os escravos da região conquistaram a liberdade. Como a maioria trabalhava para fazendeiros, optou por continuar no meio rural, produzindo para subsistência e cultivando cana de açúcar, mandioca e banana.
Até os dias de hoje, os descendentes de escravos do Valongo integram três famílias: Fael, Caetano e Costa. Elas se uniram ao longo dos anos e hoje quase todo mundo que mora por lá tem algum parentesco.
Na comunidade predomina entre os descendentes a Igreja Adventista do Sétimo Dia. A maioria frequenta cultos e segue as normas da religião. Eles contam com a fé e o apoio dos pastores para superar as dificuldades. Boa parte diz que, sem a ajuda da Igreja, a comunidade podia ter desaparecido.
Os costumes e as tradições dos negros vindos da África foram abandonados com o tempo e especialmente por causa do preconceito. Mesmo assim, a comunidade foi reconhecida como quilombola em 2004, pela Fundação Palmares do Ministério da Cultura.
ORGULHO DE SER NEGRO
A escravidão, os maus tratos dos fazendeiros, a venda de pessoas como se fossem objetos ou animais e todo o sofrimento associado ao passado, boa parte dos habitantes do Valongo prefere esquecer. Até hoje, dizem ser vítimas de preconceito.
Ester Bertolino Caetano, 64. Bisneta de escravos, foi bastante discriminada desde a infância. Mesmo assim, ela diz que não omite sua descendência. “Me orgulho pela cor da minha pele e também sei que meus bisavôs sofreram muito, mas eu não gosto desse nome quilombola. Não tenho orgulho e nem preservei os costumes”, declara.
O terreno onde construiu sua casa foi uma herança do matrimônio com Moacir Caetano, 64. Juntos, eles tiveram três filhos, dois permaneceram no Valongo e apenas um foi morar fora. Assim como os pais, nenhum mantém as tradições e nem consideram a linhagem vinda dos escravos. “Uma coisa nós herdamos, as dificuldades. Todo mundo aqui sofreu demais. Hoje escolher a roupa que vou usar é luxo. Cozinho qualquer item, mas antigamente não podia. Passamos fome, era sofrimento mesmo”, comenta Ester.
Lembrar da abolição pela Lei Áurea de 1888, assinada pela Princesa Isabel, é uma data comum no vilarejo. Não há comemorações. É um dia normal de trabalho, sem mudança na rotina. “Não lembramos, passa batido aqui. Sabemos que é importante, mas nem temos que festejar nada. Esse povo sofreu demais, apanharam muito. Foram judiados e de alguma forma nós também acabamos sendo, porque de bisavó até meu pai, a vida foi difícil”, ressalta.
A ENERGIA DEIXADA PELOS ESCRAVOS
Para receber a visita na porta de casa, Leopoldina Fael Caetano, 85, tia de Ester, a “Dona Poda do Sertão do Valongo”, corre pegar o lenço. Ela passa os dias cuidando do marido, Antônio Marinho Caetano, 90, que tem problemas de saúde e não pode se levantar. Não para um minuto se quer. “Eu não fico quieta nem à noite, não consigo descansar”, confessa. O atendimento em saúde é uma necessidade constante dos quilombolas.
Embora a idade pese, Dona Poda quer se manter na ativa. Segundo ela, a energia vem dos antepassados, que mesmo cansados da lida na roça ainda tinham fôlego para cuidar dos seus quando voltavam para casa. O que falta, segundo ela, é memória para reviver o passado.
“Tinha muitas histórias sobre escravos, contadas pela família, mas esqueci tudo. Vem chegando a idade e vai levando embora a memória da gente. Os problemas da vida também são culpados pelo esquecimento”, salienta.
TRADIÇÃO MANTIDA NA COZINHA
Alguns costumes dos escravos, os valonguenses mantêm sem perceber. Na cozinha de Seu Neném, onde está o fogão a lenha e as canecas de alumínio penduradas na parede, ele faz sua comida com uma pitada de tempero e tradição quilombola. A filha, Ester, também preserva nas receitas as poucas tradições das escravas que conhece.
Uma das iguarias da culinária quilombola é o Polento, também conhecido como ou Tarde Toda. Ele é feito com fubá, leite, margarina e sal, enrolado no pano e assado durante a tarde inteira sob o fogão à lenha. Ester aprendeu com a mãe, Bertolina Caetano, que lhe repassou os truques da receita antiga. “Faço polvilho e o Polento, meus avós e bisavós faziam, veio deles isso. A gente tem outros costumes, mas nem nota”, comenta ela enquanto alimenta as galinhas do terreno.
Para a agricultora Noeli Pinheiro, a comunidade é feliz apesar das dificuldades. Segundo ela, todos são tranquilos, discretos e muito religiosos. O problema é quando precisam de assistência. O posto de saúde mais próximo fica a 12 quilômetros. “São felizes, pessoas simples e muito verdadeiras”, conta. A única movimentação do vilarejo é em direção à propriedade dela, que vende produtos orgânicos e plantas.
REGIÃO TEVE QUASE 3 MIL ESCRAVOS
No Brasil a abolição demorou. Os movimentos pela libertação dos escravos, segundo estudiosos e registros históricos, ocorreram a partir de 1850. Na mesma época, a Lei Eusébio de Queiroz, a qual impedia tráfico de escravos africanos no país, proporcionou um verdadeiro colapso na renovação da mão de obra. Neste período muitos escravos juntavam dinheiro para comprar a alforria e outros fugiam para os quilombos.
Com as leis avançado, como em 1871, quando uma lei garantia o direito de pecúlio, proibindo fazendeiros de confiscar dinheiro economizado pelos escravos e na Lei do Ventre Livre, que libertava os filhos de escravas nascidos depois da lei, o sistema foi perdendo a força em alguns estados. Assim que assinada [em 13 de maio de 1888], a Lei Áurea também demorou para chegar em muitas propriedades.
Leia mais sobre a comunidade quilombola do Sertão do Valongo em:
https://www.retratosdeportobelo.com.br/com-a-graca-de-deus-e-a-ajuda-dos-amigos/
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