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O contrabaixista, compositor, maestro, autor, educador, produtor musical e arranjador Marcos Paiva, nome de ponta da cena da música instrumental brasileira, lançou recentemente Slamousike, álbum de oito faixas inéditas no qual ele trabalhava desde 2017 e que une ritmos do hip hop como o rap ao samba e ao jazz, com pitadas de saborosas improvisações e letras de cunho social e político. Slamousike chegou às plataformas digitais em agosto, está disponível no sítio Cenaindie para ser baixado na íntegra em formato MP3 e conta com as participações do MP6, o sexteto do maestro, além dos rappers Max B.O., Kivitz, Killa Bi e com a slammer e performer Juliana Jesus.
Slamousike abriu neste dia 22 de outubro as audições matinais que promovemos no Solar do Barulho aos sábados, aqui na Estância Turística de São Roque, no Interior paulista, onde fica a redação do Barulho d’água Música. O álbum é o sétimo disco de Paiva, paulista de Tupã, e valoriza ainda mais o troféu que o contrabaixista arrebatou em 2017: naquele ano, Paiva conquistou o Prêmio Profissionais da Música (PPM) de melhor álbum com Concerto para Pixinguinha, que gravou ao lado da cantora Vânia Bastos, mais César Roversi (sopros), Nelton Esse (vibrafone) e Jônatas Sansão (bateria). Concerto para Pixinguinha deriva de projeto concebido em 2013 e que, antes do disco, estreara na cidade de São Paulo como show em 2016, com produção impecável de Fran Carlo e Petterson Mello, depois virou atração em turnês das mais concorridas em vários teatros pelo Brasil por cinco anos.
Slamousike conta com a participação também, além do MP6, Juliana Jesus, Killa Bi, Kivitz e Max B.O de Wanessa Dourado. Aos sete álbuns de Paiva soma-se a colaboração do autor como contrabaixista, arranjador, compositor e produtor musical em dezenas de discos. Como educador, ele escreveu O Contrabaixo na Roda de Choro — pioneiro no uso do seu instrumento no choro. Mestre pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Paiva ministra cursos online, além de aulas em festivais, escolas e universidades.
O novo disco, gravado em março deste ano no estúdio paulistano Trama Nacena, inaugura uma nova trilha na produção musical do arranjador que, até então, vinha se destacando na cena do choro. O embrião de Slamousike, entretanto, remonta a 2010, ano em que Paiva passou a frequentar a Cooperativa da Rima de Guarulhos, na Grande São Paulo, um dos berços desta cultura no estado de São Paulo. A produção é do próprio Marcos Paiva, com mixagem de Big Rabello e masterização por Maurício Gargel.
“Escrevi as músicas – que os MCs chamam de base – e comecei a trocar ideias com o Kivitz e o Max B.O.”, afirmou Marcos Paiva, que em seguida conheceria Juliana Jesus e Killa Bi, ambos lhe apresentadas por Kivitz. “Com as duas e o Kivitz achei que estava fechado. Daí reescrevi as músicas e mudei alguns arranjos para atualizar a sonoridade que estava em minha cabeça.”

A partir da fileira em pé, da direita para a esquerda: Jaziel Gomes, Gustavo Bugni, Daniel D’Alcantara, Edu Ribeiro, Marcos Paiva e Max B.O. Sentados, no mesmo sentido, Cássio Ferreira, Killa Bi, Kivitz e Juliana Jesus (Foto: José de Holanda)
A música brasileira – seja o samba, o choro, o maracatu, o jongo etc. tem dois pilares estruturais: uma composição forte e um caráter livre, em que prevalece a improvisação, explicou o contrabaixista. “Neste caso, da música brasileira, é uma improvisação com o caráter brasileiro”, observou. “Muitos chamam de improvisação interpretativa, pois se difere muito da improvisação jazzística vinda do bebop”, emendou. “O rap traz também dois tipos de composição ou estrutura: a letra fechada e o freestyle. Imaginei que poderíamos estabelecer uma linha direta entre esses conceitos”, avançou Paiva, antes de arrematar: “A letra fechada com a composição musical. A rima improvisada (freestyle) com a improvisação brasileira e jazzística”
O sexteto MP6 está na estrada desde 2006 e, atualmente, reúne Paiva, Cássio Ferreira (sax e flauta), Daniel D´Alcântara (trompete), Edu Ribeiro (bateria), Gustavo Bugni (piano) e Jaziel Gomes (trombone).

Guga Stroeter: Marcos Paiva tem a competência lhe confere propriedade para gerar uma obra que realiza e discute, concomitantemente, a tradição e a ruptura (Foto: Arquivo Pessoal)
Sobre Slamousike, o produtor e diretor musical Guga Stroeter, que na década dos anos 1980 participou da fundação do quinteto Nouvelle Cuisine, escreveu:
“Marcos Paiva é um pesquisador comprometido com a trajetória da música brasileira desde seu período formativo da segunda metade do século XIX até os dias atuais. Essa competência lhe confere propriedade para gerar uma obra que realiza e discute, concomitantemente, a tradição e a ruptura. Sim, pois essa mesma música, que na opinião dos antigos gregos possuía o dom de amansar as feras é quem traz à cultura contemporânea a efervescência da discussão e do debate.
A Bossa Nova discutiu a placidez dos sons consonantes e seu embate com seus primos dissonantes. Walter Franco ao apresentar a canção Cabeça no VII Festival Internacional da Canção (FIC), em 1972, causou estranheza ao público ao borrar as fronteiras entre o que era considerado ruído e os sons então considerados musicais. Arrigo Barnabé propôs uma ampliação tanto das fórmulas de compasso, frequentes na MPB convencional, quanto jogou para o alto o porto seguro da canção que é a sua tonalidade.
Em Slamousike Paiva revela que é mais um representante dessa inquietude. Se, historicamente, o modernismo iluminista arrebatou o ocidente com a ilusão da resolução dos conflitos humanos por meio da exacerbação da ciência e da filosofia, nas últimas décadas irrompeu política e criativamente o grito do excluído.
Essas vozes passaram a extravasar uma poesia urgente, lapidada por rigor e criatividade ao ponto de se tornar o principal pivô da transformação da nova música brasileira. A estratégia sagaz do oprimido de driblar os mecanismos repressores para manter sua identidade cultural, não é novidade no Brasil. Os sambas disfarçando os calundus, a capoeira travestida de dança, os orixás sincretizados com a cosmogonia católica. E eis que chegamos ao final do século XX e adentramos o novo milênio assistindo à transformação do hip hop originário dos bairros negros de Nova Iorque num idioma universal pulsante em todas as periferias do planeta.
Certa vez, participando de um ciclo de palestras, conheci um antropólogo francês que não cansava de repetir a máxima que ele mesmo havia criado: “O rap é a música folclórica da cidade de São Paulo”. Esse verso causou-me estranheza, no entanto, penetrou em minha mente para que eu pudesse rever e elaborar novos conceitos. Na atualidade, é simplesmente impossível virar as costas para o rap, pois as novas gerações de artistas do gênero ecoam em todos os ambientes e cada vez mais aprimorando qualidade e engenhosidade.
O termo “rap” é uma abreviação para “rhythm and poetry”, ou seja, “ritmo e poesia”. Direto e reto, assim como são os cantos do candomblé. Marcos Paiva criou em Slamousike a melange do rap com a dita música instrumental brasileira, trazendo para seu caldeirão sonoro citações e procedimentos que abarcam a escola contrapontística dos chorões e dos maxixeiros como Anacleto Medeiros, Irineu Batina e Pixinguinha.
Melodias, harmonias, polirritmias recortadas e coladas com a mesma liberdade que caracteriza o retalhamento rizomático praticado pelos DJ’s. No decorrer das oito faixas, reconhecemos a mineiridade de encadeamento de acordes visuais, a sofisticação simples do pensamento sintético de Moacir Santos, o swing e a liberdade implícitos no samba jazz que balançou a década de 1960. Tudo muito pictórico. Muito arranjo, muito virtuosismo, pois a essência do risco da criação coletiva improvisada oriunda do jazz permeia a atitude geral do sexteto.
E como bem sabemos, o jazz é um gênero musical que se forjou como resposta às injustiças sociais e raciais. Unir o caudaloso centenário das sonoridades afro-brasileiras à pujança da nova poesia urbana (hip-hop, slam) é um desafio que exige mais do que engenhosidade, pois nesse momento estamos adentrando o universo do respeito. Meras sobreposições poderiam anular o que cada linguagem tem de mais rico. Aí está o mérito de Slamousike: o ouvinte navega conduzido por uma conversa orgânica e democrática, onde o artesão Marcos Paiva consegue atar serpentes reversas. E assim temos esse caleidoscópio antropofágico que aponta para a única esperança que podemos alimentar para o futuro da humanidade, que é o entendimento que advém da sensibilidade e sabedoria do diálogo franco e sem preconceitos. Vamos todos, na vida e na arte, iluminar sombras abjetas e afastar os fantasmas que nos assombram fantasiados nas mais perversas formas de segregação.”
O próprio Marcos Paiva, em As escolhas estéticas e o campo social de Slamousike, apontou:
A cultura africana foi definidora na constituição das músicas surgidas nos centros urbanos de todas as Américas. A fusão dessa cultura com as culturas locais e europeias possibilitou o nascimento de ritmos que culminaram no choro, no samba, no jazz, na música creola peruana, nomento jamaicano, no son cubano e em muitos outros gêneros da região.
E mesmo excluído da vida financeira e intelectual, a não ser por sua espoliação e seu trabalho forçado, o povo negro foi protagonista e decisivo para a formação cultural de todos os países do novo continente. Afinal, através de mecanismos, como a transmissão oral, a dança e o sincretismo religioso, conseguiu burlar os mecanismos opressores elevar adiante os seus valores culturais. O processo de estabelecimento dos gêneros musicais aconteceu no momento histórico do surgimento das grandes cidades pan-afroamericanas, e foi gerado pela tamanha interação musical e cultural entre músicos. O convívio diário entre músicos nos ambientes informais e formais, como festas e os estúdios de gravação, por exemplo, formatou os estilos musicais citados acima ao longo de todo o século XX.
Como qualquer organismo vivo, os gêneros musicais nascidos nesse momento histórico de urbanização atravessaram todo o século XX se misturando, em um movimento contínuo de transformação. Esse movimento reverberou em todo século possibilitando o surgimento de novos gêneros musicais. Com o hip-hop não foi diferente. Este gênero nasceu do encontro de culturas distintas: jamaicanas, latinas e afro-norte-americanas. Dos bairros pobres e periféricos dos EUA, foi alçado, pela indústria norte-americana, como a maior força cultural dos últimos 30 anos no mundo. E esta cultura engloba a moda, o comportamento, assim como o grafite, a dança e a música.
O hip-hop, aqui tratado como cultura pop, faz parte da vida de milhões de jovens em todo o planeta. O nascimento desse gênero estadunidense traz em si a essência de toda música negra nascida no novo continente: a troca, a interação e a mestiçagem. Imaginar que a Jamaica foi o gene estrutural que forjou a batida do hip-hop até hoje me espanta.
Mas por que falo tudo isso e ainda de uma forma tão superficial? Porque este disco busca um diálogo entre minhas referências musicais brasileiras, como o choro e o samba, com a cultura hip-hop. São culturas que, num primeiro momento, aparentam ser muito distantes, mas não são. Se pensarmos historicamente, veremos que estão ligadas a um mesmo cordão umbilical: a cultura africana. E que fazem parte de movimentos urbanos, negros e periféricos que, num primeiro momento, foram negados e segregados, para, depois, se tornarem símbolos da cultura de seus países de origem. Este álbum é minha reverência a esses criadores que tiveram uma vida de luta diária.
Slamousike é Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, Irineu Batina, Sinhô, Charles Mingus, Max Roach, Gil Scott-Heron, Moacir Santos, Milton Nascimento, Racionais, Sabotagem, Tia Ciata – e todas as mães de santo que recebiam os sambistas e fizeram florescer o samba –, e tantos outros artistas e intelectuais negros que, com suas obras, construíram a minha consciência do mundo, – homens e mulheres que conseguiram ser protagonistas, mesmo com todo um sistema (político, judiciário, econômico e educacional) operando contra.
Leia e saiba mais sobre Marcos Paiva e Concerto para Pixinguinha e conteúdos a ambos relacionados no Barulho d’água Música ao visitar o link https://barulhodeagua.com/tag/marcos-paiva/