1593 – Paulim Amorim (RJ) atravessa o rio antes do combinado após dar asas a um dos seus passarinhos, mas deixa baú de canções inéditas

Morte precoce do poeta, cantor, compositor e educador fluminense marca o Natal de 2021,  poucos dias depois do lançamento do primeiro disco do músico que formara com Josino Medina Os Embaixadores da Lua.  “Manoamigos” lembram, com saudade e gratidão do “eterno menino” e ressaltam valor de sua pouco divulgada obra, construída por sofisticadas letras e incansável esmero   

Ao longo deste ano e mais recentemente nas últimas semanas o país chorou  a morte de alguns dos seus mais consagrados cantores e compositores, como a baiana universal Gal Costa e o Sr. Brasil Rolando Boldrin, além do “tremendão” Erasmo Carlos e, por que não?, do cubano trovador Pablo Milanés, curiosamente, os dois primeiros em 9, a dupla seguinte em 22 de novembro. As homenagens aos quatro são mais do que justas, mas, ainda no Natal de 2021, a música e a literatura perderam também o poeta, escritor, cantor, compositor e professor de História Paulo Roberto Amorim de Almeida, pouco conhecido pela mídia até por vontade própria, mas admirado e elogiadíssimo entre os amigos e fãs para os quais era conhecido pelo nome artístico Paulim Amorim. Fluminense de Paracambi, cidade da região Metropolitana do Rio de Janeiro, a cerca de 80 quilômetros da Capital, Amorim partiu muito antes do combinado, como Boldrin gostava de afirmar quando um artista desencarna ainda jovem, sem chegar aos 60 anos de idade. Semanas antes da partida, decorrente da evolução de uma doença relacionada a problemas de dentição, ele acabara de lançar Passagem de Rio, seu primeiro álbum, que gravara com 12 faixas após longo período de maturação e apoio de vários dos inúmeros parceiros de estrada. Um deles, o violeiro Bilora, revelou, ainda, que Amorim deixou entre outros inéditos, pronto e pré-gravado, Olho Grande do Rei, com 10 trilhas e anterior a Passagem de Rio, um título que, por sinal tem muito de profético.

Os dois álbuns, mais Canções da África da Gente: Liquinha, o Capitão Menino (2011, livro pela Editora Território Livre e Cia Pra Sonhar), chegaram à redação deste Barulho d’água Música enviados pelo cantor e compositor André Luís e pelo filho do autor, Tiê Amorim. Liquinha… tem ilustrações, diagramação e capa feitas pelo também violeiro mineiro Gustavo Guimarães, que assina várias das fotos disponíveis de Amorim nos arquivos de Tiê ou na internet — um meio que não atraia muito a simpatia do educador, assumidamente pouco afeito às badalações e aos contatos midiáticos geralmente impregnados de moralismos e julgamentos cabotinos. Mas Tiê revelou em entrevista ao blogue que, apesar de aparentemente arredio e de “ter um pé atrás com a tecnologia”, o pai era intenso em tudo o que fazia, quer fosse se dedicar à composição de uma nova música, quer fosse em um momento de descontração como empinar pipas ou se entreter em brincadeiras de roda com a criançada.

Paulim Amorim, ainda conforme Tiê, não raro, costumava atravessar noites trabalhando em uma música, à base de muito café, pitando cigarros de palha artesanais que ele mesmo preparava e, invariavelmente, munido apenas de papéis e canetas. “Ele era muito autêntico”, declarou Tiê. Este espírito irrequieto e criativo do compositor também era inspirado pela natureza e, em especial,  pássaros (tanto que o nome do filho é uma alusão à música Penas do Tiê,  gravada por Fagner com participação de Nara Leão), sem contar a larga vivência de trabalhar durante muitos anos como animador cultural em encontros sobre plantas medicinais, agricultura familiar, segurança alimentar, com parteiras, benzedeiras, raizeiros e congadeiros.

Estas experiências contribuíram em sua formação como músico e compositor, mas em parte de sua biografia consta que a herança do pai (um ferroviário que criou e sustentou a família morando no bairro da zona Norte carioca da Abolição e que lhe transmitiu os primeiros contatos com a cultura popular) foi fundamental para estimular seu lado de pesquisador, fazendo com que Paulo Roberto acumulasse um extenso acervo de memórias e de gravações, das mais diversas manifestações da cultura popular, do congado às cantigas de roda, das Folias do Divino às cantigas infantis de brincar e memorizar, e oficinas na área de arte e educação.

O cantor e compositor Bilora Violeiro, um dos mais próximos parceiros de Paulim Amorim (Foto: Marcelino Lima)

O bem-querer dedicado aos amigos era outra das qualidades de Amorim. E a recíproca verdadeira, razão pela qual a precoce passagem de Amorim ao Plano Maior enterneceu e foi das mais lamentadas dentro do seu círculo mais íntimo. O ex-parceiro Levi Ramiro, por exemplo, sem esconder a consternação, dedicou ao fluminense Luz Oculta – álbum recém-lançado, no qual o violeiro paulista também presta tributo ao mestre baiano Vidal França, que nos deixou em fevereiro deste ano; no disco, Levi e Amorim assinam Miração, música que fecha o projeto. Mas a lista dos “manamigos” e parceiros do autor de Passagem de Rio, das mais extensas, inclui, além dos já mencionados Bilora, gente do talhe bem feito como André Luís e Levi Ramiro, por exemplo, Fernando Guimarães, Pereira da Viola, Chico Lobo, Tau Brasil, Nádia Campos, Katya Teixeira, Daniela Lasalvia, Josino Medina…

Josino Medina (com o violão) e Paulim Amorim em uma das apresentações da dupla Os Embaixadores da Lua

A valorização das tradições populares entre todos desta seleta lista e as trocas de influências é forte e amalgamada, ainda, pelos conselhos e amizade com Dércio Marques – cantor e compositor de Uberlândia (MG) pelo qual Paulim Amorim nutria aberta admiração, compartilhada também por Josino Medina. Paulim e Josino chegaram a morar juntos e fundaram em Araçuaí (MG) a dupla Os Embaixadores da Lua (https://andersonhander.wordpress.com/2013/07/22/os-embaixadores-da-lua/), cujo repertório se espelha na obra do “rapsodo polinizador”, uma das formas de respeitoso tratamento que era conferido a Marques entre os cantadores.

Ambos, Josino Medina e Paulim Amorim, durante o período mais crítico da pandemia do coronavírus, forçados pelo isolamento social que se impunha, trocaram farta correspondência por canais virtuais, apesar da pouca intimidade do fluminense com estes ambientes. É interessante notar que nestas circunstâncias ambos demonstravam forte esperança nos efeitos das vacinas anti-Covid-19, enfatizando que não se exporiam sem que houvesse garantia de que, devidamente imunizados, não correriam riscos, ainda que o reencontro, enfim, demorasse um pouco mais para ocorrer.

Na troca de mensagens que Josino compartilhou gentilmente com o Barulho d’água Música, os amigos também manifestaram a esperança do retorno à Presidência da República do petista Luís Inácio Lula da Silva e condenaram com veemência e pesadas críticas à era Bolsonaro. “Continuo um militante -agora virtualmente”, escreveu Josino. “E farei o que for possível para elegê-lo [Lula] novamente. A minha parceira, Sonia Anja, também é outra apaixonada pela volta de Lula. Espero que saia entre nós uma canção de apoio.”

Elegeram o capeta pra ser presidente do Brasil”, respondeu Amorim. “De fato, ninguém suporta mais esse desgoverno, que mente, sucateia, desconstrói, mas o dia deles está marcado”, pontuou, antes de prosseguir e vaticinar: “O governo já está com mais de 64% de rejeição; e logo a verdade sobre essa quadrilha será revelada”.

Já era agosto de 2021 quando trocaram estas palavras. Paulim Amorim se encontrava em Monte Mor, no Interior paulista, ora na casa de uma sobrinha, ora na da irmã, tentando retomar tratamento do estômago e fazendo as bases para os arranjos de músicas inéditas — cujo conjunto batizou de Brejeiras, pois “tinham pegada de viola” que, acreditava, seriam inspiradas pela “violinha” que recebera de presente da cantora mineira Daniela Lasalvia, embora seguisse utilizando o violão para tal, apenas por falta de intimidade com o instrumento de dez cordas. Ele solicitava, ainda, que Medina lhe desse notícias de amigos em comum ou lhe repassasse seus endereços, um deles chamado Walberleno, do qual tinha “pressa em saber notícias” e, assim, despedia-se naquela mensagem: “Mano, fique bem, cuide-se, cuide dos seus e vamos ter fé que esse tempo de malvadeza vai acabar… toda beleza de tudo, abraços de seu manoamigo Paulim”.

Quatro meses antes, em abril do ano pasado, Amorim comunicara que Passagem de Rio encontrava-se pronto pra ser apreciado, mas faltava-lhe “grana pra contratar os serviços de quem saiba colocar no YouTube”. O autor destacou que esperava “o tempo abrir pra encaminhar a divulgação”. Era uma resposta ao pedido de Josino Medina, que lhe escrevera na véspera, de Araçuai, contando que soubera do disco novo pelo amigo comum, o músico sergipano radicado em Pocinhos do Rio Verde (MG), André Luís, “que o ouviu e gostou muito”. O elogio de André Luis, acentuou Josino, despertou “a curiosidade de alguns amigos, no Facebook, inclusive o meu”. E lamentava não ter em casa um aparelho de reproduzir cedês, embora tenha cobrado de Amorim: “O que estás esperando pra mostrar a cara por lá [no Facebook] e compartilhar do seu feito conosco?”.

Já em 18 de dezembro, Amorim, ao retomar o contato com Josino Medina, inquiriu o amigo: “Aê moço já escutou o CD? Gostou do resultado final? Levou lá no Dener e o escutou junto mais ele? Escreva aí umas palavrinhas, sua opinião é muito importante”. Logo à frente, nesta mesma correspondência, Paulim informou: “Estou fechado pra balanço, com uma infecção urinária que me tirou de ação; até pra escrever esse emeio [a palavra tem esta grafia no original do escritor] tá custoso. Saúde, paz, alegria pra todos, abraços, Paulim.”

A resposta de Josino foi escrita em 22 de dezembro, às 17h05, com este teor:

Salve, salve, Paulim, irmão da lua:

Estamos fazendo tomadas de preço, campeando a compra de um aparelho que toca fitas, lps e cds [conforme grafado no original]. Então peço ao manoamigo que controle a sua ansiedade para que eu diga o que achei do seu Passagem [de Rio]. Quanto a Dener, não estou conseguindo encontrá-lo nem no Facebook. Não sei o que está acontecendo, mas não é falta de vontade, não. São as circunstâncias. Então, saúde, paz e beleza pra você mais Tiê, que, horas dessas, você vai ter as minhas impressões do seu feito. Fique com Deus. Boas horas, na paz e zen! Um abraço, Josino”.

O reencontro não veio. Em 16 de maio deste ano, ao escrever para Tiê, Medina revelou que ao reler as mensagens do amigo que partira no Natal anterior fica triste “de que ele fez sua passagem sem ao menos se despedir de mim” e observa que não consegue “parar de pensar no que pode ter acontecido”. Josino arremata o contato informando a Tiê que “gostaria muito de revê-lo, abraçá-lo e levar contigo alguns instantes de prosa”, deixando o convite: “Quando tiveres tempo e condições, venha nos visitar. Mando um abraço pra Keila, mais dona Rute.”

Dias antes de partir, Paulim Amorim fora ao encontro do filho, em Vitória da Conquista (BA). O rapaz recebeu o pai na rodoviária da cidade e se lembra de um episódio marcante para ambos: assim que chegaram à casa onde Tiê morava, ao encontrar um passarinho morto, o músico disse “não estou gostando deste sinal”.

De Vitória da Conquista, poucos dias depois, ambos rumaram para Belo Horizonte )MG) e depois até à cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de, ao lado dos familiares, darem prosseguimento, com mais recursos, aos tratamentos do compositor. Durante o caminho, Tiê sentiu que aquela era a jornada de despedida, contudo, salientou: “A viagem foi linda, conversamos muito e passamos por inesquecíveis paisagens, fiquei muito emocionado”. Já na zona Norte carioca, mais uma vez ambos viveram experiência envolvendo um pássaro — agora um canário, que, do nada, surgiu cantando em um local pouco provável para uma ave semelhante gorjear: as margens da Linha Amarela, na zona Norte carioca . Tiê se lembra do sorriso tranquilo do pai, que parecendo já esperar pelo fechamento que se aproximava, exclamou: “É hora de soltar os passarinhos!”

O cantor, compositor e violeiro Bilora também foi um dos parceiros mais próximos de Paulim Amorim. Bilora relembrou que o amigo, como professor das redes pública e particular, sempre utilizou a arte no processo de aprendizagem. Como músico, iniciou a trajetória em festivais no Vale do Mucuri (MG) e já de cara venceu o primeiro, promovido em Pavão (MG). Com o transcorrer da carreira, teve músicas gravadas por Rubinho do Vale, Dércio Marques, Pereira da Viola, o próprio Bilora e Tau Brasil, entre outros. Também esteve em feiras de cultura popular, encontros de parteiras e benzedeiras, de economia popular solidária e de agricultura familiar. Em 2011 publicou Canções da África da gente: Liquinha, o Capitão Menino.

André Luís: a poesia de Amorim esteve sempre à frente, buscando acima de tudo o encontro, o encantamento, a beleza, o despertar.

André Luís escreveu que “sem aviso nem pedido de licença”, o autor de Passagem de Rio “partiu para as outras margens do além-mundo bem quando a gente estava para se reencontrar, para reiniciar A Oficina, depois de quase 20 anos”. Em outro trecho deste depoimento, André Luís conta que o educador deixou com ele algumas letras “que não sei se poderei trabalhar sozinho, longe das sacadas, das brincadeiras, das risadas, do perfume de café e doutras ervas, dos saltos inesperados de ‘peixe vivo’ que coloriam sua caminhada amiga.”

Paulim Amorim, de acordo com André Luís, possuía escrita poética e bem-humorada, que não pretendia conclusões, mas antes disso, pretendia as confusões, as possibilidades, as singelas incertezas, as vulnerabilidades e que “muito mais reticentiava do que finalizava as frases”, pedindo assim que “as ideias- iluminuras reverberem, armoriais, desde a linha do texto até a linha do horizonte e além, como se observa no ‘Cantos da África da Gente’, seu livro de contos”.

Professor de História, ainda para André Luís, o parceiro “tinha uma visão aguda da condição histórica de nosso povo, que ele amava, e com quem aprendeu a ler o mundo a partir da perspectiva do barro”. A “gente que mexe com a lida”, avançpu André Luís, era sua inspiração, seu mote, seu propósito. “Sua arte era uma arte engajada. Mas não era uma arte panfletária, a poesia esteve sempre à frente, buscando acima de tudo o encontro, o encantamento, a beleza, o despertar”.

Paulim era um artesão, escultor de melodias e harmonias em um violão competente, seguro, da escola de Vital Farias (PB), seguiu opinando André Luiz. “Com nítida influência de Fernando Guimarães, Levi Ramiro e Tavinho Moura, suas linhas melódicas e harmônicas criadas dedo a dedo são sempre ricas e surpreendentes”. Antes de encerrar, André Luiz resgatou uma rápida conversa com o amigo:

– Paulim, sua música tá sempre mudando de direção, mas tá sempre subindo!
– É que nem pipa! Quem solta a pipa não pode parar! (Rindo muito)

“Adeus manoamigo, companheiro. Até breve. Nós, que aqui ficamos ainda no desencanto, seguimos, “embaixando…”

Fernando Guimarães, com o violão, e Dércio Marques: “O Paulim era mesmo muito diferente. Não gostava de viver na mesmice, queria sempre fazer algo inédito, que realmente provocasse mudanças.”

O cantor e compositor Fernando Guimarães (MG) gravou dois depoimentos emocionados sobre Paulim Amorim, que condensamos no texto abaixo:

Para mim Paulim Amorim era uma figura maravilhosa, por quem eu tive muita estima e que, realmente, foi-se embora cedo. Eu o conheci por meio do Vital Farias [cantor e compositor nascido em Taperoá, na Paraíba, e que entre outros destacados trabalhos na cena musical brasileira, formou o quarteto que se apresentou na série da Funarte chamada Cantoria, ao lado de Elomar, Xangai e Geraldo Azevedo e, de cujo concerto, realizado no Teatro Castro Alves, na cidade do Rio de Janeiro, em 1984, resultou um dos dois discos que a Kuarup lançou posteriormente a partir deste projeto, fora um terceiro, apenas com Elomar] na década dos anos 1980, no Rio de Janeiro. Depois, fomos muito amigos. Este trabalho que ele terminou [Passagem de Rio], do qual eu inclusive participo, é um disco muito bonito. Mas o Paulim tem canções mais antigas que são verdadeiras pérolas. Algumas foram gravadas por amigos dele; não sei se o filho [Tiê] já encontrou este material, mas o Paulim ainda tem um baú valioso com composições maravilhosas.

O Paulim foi formado em História e se tornou em um grande escritor. Tinha facilidade com as palavras, com poesia, e uma pessoa assim sempre nos traz muita alegria. Pudemos ser parceiros em algumas músicas, inclusive tenho um trabalho que ainda não conclui no qual há participação dele em uma música que compusemos; talvez esta a tenha sido a derradeira participação dele em um disco.

Como se diz, na vida todo mundo tem seus momentos de dificuldades e eu sei que ele passou por algumas. Mas tinha muita vontade de vivenciar as coisas por meio da música. Contudo quando uma pessoa veste uma camisa e procura viver aquilo, infelizmente, nem sempre consegue. O Paulim era mesmo muito diferente. Não gostava de viver na mesmice, queria sempre fazer algo inédito, que realmente provocasse mudanças. Essa é uma postura muito bonita, mas que, infelizmente, também causa certas apreensões para as pessoas.

Nesta toada, entretanto, ele sempre foi um irmão, um amigo maravilhoso. Foi através dele que conheci Pereira da Viola, Josino Medina, Josiel [Rusmont], Joaci Ornelas, que foi embora recentemente [o mineiro, de Salinas, foi vencido por um câncer em 28 de março deste ano, morte que também comoveu enormemente amigos, fãs e parceiros] . Eu conheci esta moçada e outro tanto de pessoas por intermédio dele quando eu estava terminando o trabalho que o Vital Farias produziu, na década de 1980 [Guimarães se refere ao álbum de 1987 Bem-te-vi viagem – Primeira a Ribeirão Fundo, sobre o qual mais detalhes podem ser lidos e as músicas baixadas pelo linque http://viladepatos.blogspot.com/2008/02/fernando-guimares-1987-bem-ti-viagem.html]

.O Paulim até vinha para minha casa aqui, em Poços de Caldas (MG), passar uns dias comigo, antes do falecimento. Entretanto, resolveu mudar de itinerário e ir à Bahia ficar junto com o Tiê. E ainda bem que fez isso, porque foi um momento bom, de conviver com o filho. De qualquer forma, fiquei muito sentido. Quando a gente perde alguém de quem gosta, é muito triste.

Outra característica do Paulim que o diferenciava é que ele se sentia como um menino, ele se via sempre assim, como um menino. E nós também fizemos alguns shows muito bonitos em lugares como Caldas (MG) e Campinas (SP), por exemplo. A música que eu gravei com ele chama Fé no Amor, sobre a qual vou dar uma ‘palhinha’:

Oh companheiro, oh companheiro, a vida vale a esperança de ser feliz/Mas só não vale se, por dinheiro, comprarem a sorte de quem bem diz/O bem querer, a fé no amor, o diamante de nossas vidas, a lua mansa subindo a serra, aquele abraço de uma partida./Ajunte as forças do coração, que a vida é terra, é trigo é pão, é labuta de todo dia para não viver sem poesia.

Capa do mais recente disco de Levi Ramiro, cuja música Miração, em parceria com Amorim, encerra o repertório: “Nosso irmãozinho descansar, viajar do outro ladro do córgo, ver outras paisagens onde a gente em breve espera reencontrá-lo”.

Cantor, compositor e luthier Levi Ramiro assinou várias composições a quatro mãos com Paulim Amorin, entre elas Correu na Lira (faixa do álbum Mote Canção); Madrinha Flor (Capiau), e Viola Enfeitada, que faz parte de um disco de Mauro Silva de Oliveira que Ramiro produziu. Miração, a derradeira, fecha Luz Oculta e foi feita no final do ano passado.

Levi Ramiro em suas falas sobre Paulim Amorim deixa transparecer a emoção e a saudade. Elas foram transcritas e compiladas a partir do parágrafo abaixo:

O Paulim era uma pessoa presente na vida da gente, que eu conheci nas Minas Gerais por ter contato com todos os amigos dele como o Josino [Medina], o Pereira [da Viola], o Bilora, o Gustavo Guimarães, o Fernando Guimarães, o Joaci [Ornelas], toda esta trupe que queria muito bem o Paulim. Ele era uma pessoa muito talentosa, incrível. A gente via nele até uma espécie de Dom Quixote, assim como quase todos somos, sempre sonhando, sempre lutando trabalhando pela arte, pela Educação, como professor e educador na rede pública, na qual ele ralou para caramba.

Mas era difícil achar o Paulim¹, pois ele não ficava muito em mídia social: só tinha um e-mail e eu não possuía o contato com o filho dele [Tiê]. Por meio do Gustavo Guimarães foi que o encontrei e, no ato, ele me mandou uma letra maravilhosa que diz tudo sobre o que eu vinha refletindo com meus botões, sobre a vida, sobre a existência, sobre a natureza que ele sempre abordava; as questões humanas também, de forma carinhosa e poética. Ele comentou comigo na ocasião (me chamando de irmãozinho!) que acabara de fazer o Passagem de Rio com muita gente o ajudando, colaborando para poder concluir o projeto. Então, sentia-se muito feliz, só queria mais uma ajuda para divulgar o Passagem… em rádio e passei para ele uns contatos de amigos meus de emissoras como a Cultura e sintonizadas pela web.

Um pouco antes eu tinha mandado para ele a Miração com algumas mudançinhas que, inclusive, ele aprovara (Paulim não gostava que mexessem muito nas letras dele, ele mandava tudo já muito justinho); e quando eu já estava trabalhando em casa para finalizar o Luz Oculta recebi a notícia pelo Gustavo Guimarães que o Paulim tinha falecido: foi um choque, fiquei extremamente triste e assustado, pois naquela hora eu estava trabalhando com nossa música

.E assim se foi nosso irmãozinho descansar, viajar do outro ladro do córgo, ver outras paisagens onde a gente em breve espera reencontrá-lo. Era um parceiro e tanto, demonstrava esmero muito grande na escrita e na composição; sempre me mandava letras e eu tinha a função de musicá-las; é aquilo lá, sempre muito ajustadinho, ele gostava muito de discutir se fosse mexer em alguma coisa das letras, ele tinha um apreço muito grande pela ideia, pela organização da ideia.

O texto abaixo está no encarte de Passagem de Rio e, ao reproduzi-lo na íntegra, a forma como Paulim Amorim o escreveu foi respeitada

passagem de rio

quando menino emprestava palavras aos passarinhos para letrar seus pios, trinados e gorjeios. O sabiá chamava longe: tô aqui… tô aqui… trinta e oito… trinta e oito… o trinca ferro joão quédi seu tiii joão? Os sentidos organizavam os sons, fossem de chuva, vento, rio, passarinhos… de forma espontânea desenvolvia a intuição para mais tarde praticar o exercício da composição… depois vieram os versos, as quadras, a poesia, o violão, o gosto pela arte… a palavra casada à música, sem que uma comprometa a outra, desde então tem sido o desafio…

entretanto, nesse primeiro trabalho, confesso ter me dedicado à construção de harmonias, que, combinadas, resultassem em melodias pouco comuns, planando sua engenharia sem encontrar emendas… nunca quis ser cover, embora seja um albergue dos que amo e admiro! O único original é deus, o homem seu plágio e semelhança… misturei tantas cores que me perdi de mim, para encontrar o que mais se parece com o que me tornei… a viagem foi longa. o mergulho profundo e comigo trouxe muitas fotografias… paisagens sonoras do quanto amei pra ficar vivo: peixes, agulhas, cacos de conchas, os cabelos de oxum. pedras e caramujos, os lírios e os delírios…

passagem de rio é a travessia no grande no da arte; e esta não é a imitação da vida, é mais… de tudo e tantos, esse é o primeiro porto, talvez uma croa de ilha, onde encostei minha canoinha até então contei com a ajuda de muitos irmãozinhos especialmente fernando guimarães, marcela falleiros, gustavo guimarães e bilora… por tudo os isento e me responsabilizo… são muitos os defeitos especiais, principalmente técnicos, não somente no sentido de estúdio, mas também no sentido de execução de algumas músicas que obedeceram ao clic do coração… em realidade é o que sempre acreditei: o arreunir de pessoas, pedrinha por pedrinhas; erguendo pontes, atravessando rios, abrindo caminhos — longos caminhos com dias de eternidade… no mais só o destino do rio, seu curso…

dedico a dércio marques, doroti marques e vital farias… deus esteja; à todos toda beleza de tudo…

¹Em um trecho de uma das mensagens trocadas entre Paulim Amorim e Josino Medina, o fluminense explicou ao parceiro da música a repulsa que alimentava contra redes sociais, afirmando que Medina confundiria “conhaque de alcatrão com catraca de canhão”, pois não poderia ter sumido do Facebook, como era cobrado pela ausência nesta mídia, “quando nunca estive lá”. O autor de Passagem de Rio e Olho Grande do Rei foi além para cravar em seu jeito costumeiro de escrever, em letras minúsculas, com abreviações e utilizando várias reticências: “se tiver algum perfil meu no facebook, é falso”. Amorim afirmou, ainda, que a recusa em entrar na rede citada “costuma gerar muitas especulações; pois hoje vc só está vivo se está na rede… acredito que seja também difícil alguém perguntar por mim lá, pois associado ao fato de nunca ter me inscrito no facebook, faz um bom tempo que auto me exilei, e se alguém perguntar por mim, diga que estou por aí, pelo mundo…”, observou. Paulim esclareceu mais adiante que naquele momento encontrava-se em Monte Mor.

 

 

Ao publicar esta atualização bem depois do combinado devido aos entraves da lida e da correria, o Barulho d’água Música, já quase um ano depois da saída de Paulim Amorim de cena deste plano, enfim, espera com as pesquisas e a entrevistas que permitiram a construção do texto deixar seu singelo tributo ao cantor e poeta fluminense que com certeza o Brasil ainda não (re)conheceu. Agradecemos, principalmente, à gentileza, à disposição e à compreensão (e muita paciência!) de Tiê Amorim por nos apoiar e acreditar em nosso trabalho e pela entrevista que nos concedeu em um momento no qual seu coração ainda batia de maneira descompassada. E também aos que nos ofereceram depoimentos, estendo os pedidos de escusa pela demora na publicação e meu obrigado.

Não tive a honra de, em vida, conhecer Paulim Amorim, sorte que também me faltou em relação a Dércio Marques, por exemplo. Mas para encerrar a matéria, deixo um poema de minha autoria que “pulou” de repente no papel enquanto a redigia en sua homenagem!

Descanse em paz, Paulim Amorim! E obrigado pela sua imensa contribuição para a cultura popular, pela educação do povo e pela preservação de nossas tradições e esperanças! Ah, e o Lula, você já deve estar sabendo, ganhou! Tá certo que, inexplicavelmente, colocou o brucutu bolsominion arrependido Alexandre Frota na turma da transição encarregada pelo setor da Cultura e os patriotários seguem inconformados, cantando o Hino Nacional para pneus enquanto bloqueiam estradas e imploram por “intervenção militar” e até para disco-voadores! Vele por nós, mas só nas horas de folga ai no Paraíso! E aproveite para pitar um palheiro com o pessoal das antigas e curtir os recém-chegados. Acho que o Boldrin, por exemplo, adorará ouvir seus causos!  

POEMA PRO PAULIM

Trago um arco-íris nos meus dois olhos — Ele brilha sem precisar de sol ou de chuva:/Sou poeta, com minhas palavras traduzo,/Desescureço, resinifico, pacífico mundos./O que ouço, sinto, penso e me toca/Vêm e toco à flor dos meus sentidos/Dons de sete mil tons intensos, profundos.

Busco transformar em pão o confuso/Para adoçar pedra e barro como se fossem uva./É por você que, como eu, crê na esperança,/Que canto e tento espalhar boas sementes,/E domine o íntimo de cada homem sua criança,/Para que a paz e o amor sejam frutos./E possamos sempre sorrir, apesar dos abrolhos…

Leia também aqui no Barulho d’água Música:

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/https://barulhodeagua.com/tag/joaci-ornelas/

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https://barulhodeagua.com/tag/andre-luis/

 

4 comentários sobre “1593 – Paulim Amorim (RJ) atravessa o rio antes do combinado após dar asas a um dos seus passarinhos, mas deixa baú de canções inéditas

  1. Maravilhoso texto, uma homenagem muito justa e inspirada, com detalhes precisos e importantes. Paulim foi isso e muito mais, era um amigo sincero, pleno e bem humorado, uma pessoa muito humana. Foi bom poder compartilhar vários momentos com ele e conhecer um pouco do seu talento, das suas alegrias, agonias e paixões. Obrigado Marcelino por essa grande pesquisa e pela dedicação em torno da história do Paulin. Ele certamente já está a te retribuir através dessa sua inspiração para a poesia. Soltemos os passarinhos.

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  2. Marcelino, não conheço você pessoalmente, mas numa saudade sem fim pesquisei algo relacionado ao meu querido amigo Paulim na internet porque sentia que, mesmo depois de quase um ano, precisava de um relato mais contundente sobre sua partida.. à época, soube de um amigo em comum Ian, que também não tinha muitas informações. Eu estava também em um momento muito delicado e essa ficha demorou um tempo. Ainda me é difícil de digerir. Penso que se pudesse voltar atrás, o teria recebido em casa quando ele foi tocar umas canções para minha recém nascida, Céu Maria. Ou quando o encontrei na rua de minha casa me dando uma música como presente de aniversário, eu com um pouco de pressa e ele dizendo que me procurava há 4 dias para me mostrar o presente. Me encontrou e disse: oh Bia Flor, que bom que te encontrei! Me pôs nos ouvidos seu fone e me mostrou a canção. Eu amei demais, mas ele não acreditou. Depois daquele tempo passamos a nos ver num tempo mais espaçado por causa da correria da vida. Depois me mudei e nos afastamos ainda mais, a ponto de passarmos na rua e parecer ter deixado um pouco de lado uma amizade tão tão linda. Ele me dizia: “você é igual a mim, e quando eu amo é para sempre” Depois que me mudei para o interior de SP e com os agravantes da pandemia, fiquei quase 1 ano sem ir para o Rio visitar minha família e a saudade do Paulim era muito grande, então passei a me comunicar com ele por email. E consegui algumas vezes diminuir a aflição que senti nos momentos em que passamos direto um pelo outro na rua, sempre me doía bastante (ele parecia não querer falar muito comigo, tentei dar espaço). Quando tive no Rio no ano passado, em conversa com nosso amigo Ian, ele me revelou q Paulim tinha voltado a Minas. Eu lembro de ter dito algo sobre que o Paulim estava com os passarinhos muito presos e precisava soltá-los porque ele andava muito diferente comigo. Se eu pudesse, teria feito diferente. Meu amigo tão amado, tão querido! O último sonho que tive com ele foi que estávamos tocando violão numa noite de lua cheia e céu muito estrelado e em frente a uma fogueira. Consegui contar isso por email mas o encontro ficou no sonho. Cada vez que estou diante de uma noite enluarada de céu estrelado penso muito em vc, meu amigo, Paulim. A saudade é tanta mas tanta mas tanta… O que fica agora é seguir todos os conselhos que você me deixou. Sim, você parece comigo, quando eu amo é para sempre. Fica muito de você em nós, muito em mim dos seus ensinamentos. Tenho guardado com muito carinho todos os momentos maravilhosos que tivemos com a música… daquele dahora que você passava quando eu chegava de repente na sua casa, cantávamos, tocávamos, conversávamos e o tempo parava. De todos os momentos. Você me fez ver o mundo com os olhos da música… não sei terminar o que escrevo, tem tanta coisa guardada em mim. Fique em paz, meu amigo. Toda beleza de tudo!

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    1. Bia Flor, boa noite! O seu relato a respeito da convivência com o Paulim Amorim é uma das provas de amor e de amizade mais cativantes e sinceras que já vi alguém expressar pelo próximo! Ah, eu não pude conhecê-lo, mas, felizmente, neste meu ofício encontro há oito anos artistas que são pessoas muito sensíveis e que, no caso dele, tiveram estreitas relações de amizade e de parceria com nosso poeta querido. Fico feliz que o texto que eu tanto demorei a publicar (pela correria da vida!) tenha chegado até você e tocado em suas emoções. Compartilhe-o com outros amigos, principalmente os que nunca tenham ouvido falar dele. Paulim se foi, mas a obra dele é tão rica que não pode cair no esquecimento! O que eu fiz é apenas um grãozinho de areia, vamos popularizar o quanto mais seu legado! Abraços e obrigado!

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