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Parceria inédita dos prestigiados músicos resultou em Farinha do Mesmo Saco, lançado exclusivamente nas plataformas digitais
“Oswaldo Cruz, Cachambi, Méier, Bangu, Jacaré/Domingo no IAPI, Nem Romário, Messi, Pelé”
Começa assim, marrenta, porém precisa na geografia suburbana e no status de craque dos dois autores, a letra do samba-choro Domingueira, primeira parceria de Cláudio Jorge e Guinga. É que Cláudio Jorge é do Cachambi, ali colado no Grande Méier, festiva porta de entrada do subúrbio carioca. Guinga, nascido em Madureira, bem perto de Oswaldo Cruz, mas criado além, entre Vila Valqueire e as franjas de Jacarepaguá, é de seus confins. Não por acaso, além de celebrado compositor, o primeiro é tido como o maior e mais suingado violão do samba, criado musicalmente em bailes de clube, tardes sem fim ouvindo [The] Beatles, entre o samba jazz e as escolas de samba. O outro, cara mais fechada, dono de uma das obras autorais mais originais da música brasileira, é do choro, da seresta, dos Estudos de Villa-Lobos no quintal e na varanda (e não na sala de concerto), violão denso e, também como o primeiro, inimitável.
Na aparência muito diferentes, ambos começaram, lá no início dos anos 1970, no revolucionário conjunto de João Nogueira, do Méier. E, quando jovens, acompanharam Cartola, de Mangueira, aprendendo bem como ensinando ao mestre. Tudo como se vê margeando as linhas do trem, o que define existencialmente os bairros de subúrbio no Rio: um mais extrovertido, mais trem da Central; o outro mais quieto, mais chorão, trem da Leopoldina; dois sensos de humor próprios e aguçados, suburbanos, de quem foi criado na rua, soltando pipa, no futebol, botequim. Tudo Farinha do Mesmo Saco, como comprova o inesperado e inestimável álbum com esse nome que Cláudio Jorge e Guinga lançam juntos – como que abrangendo e dignificando todo o subúrbio. E eles são tão farinha do mesmo saco e tão suburbanamente sacanas que duvido que alguém, mesmo um especialista na obra de ambos, adivinhe de ouvido quem fez o quê em Domingueira. Como num domingo qualquer de subúrbio, em que se quisesse enganar o amigo que veio da Zona Sul ou mesmo do bairro vizinho, os dois parceiros resolveram trocar de papel: Cláudio Jorge criou melodia e harmonia do samba-choro bem ao estilo denso de Guinga, que por sua vez criou uma letra cheia de doces e líricas memórias tipicamente suburbanas, bem ao estilo de Cláudio Jorge: “Choro com Cantinflas, Mazzaropi, com Dedé/Muda da Portela, Delegado e Fred Astaire”.
Delicada obra-prima, Domingueira é o primeiro single do álbum que foi lançado nas plataformas digitais em 4 de novembro. Trata-se de um belo cartão de visitas do álbum, que é todo assim: Cláudio Jorge e Guinga trançando seus violões e vozes, às vezes um fazendo a canção do outro, às vezes a própria canção, nova ou antiga. É um disco feito por velhos amigos, sem dúvida – os dois se conhecem há mais de 50 anos, e só se encontraram musicalmente até aqui no breve tempo em que Guinga tocava violão e Cláudio Jorge contrabaixo no conjunto de João Nogueira, sonhavam há tempos fazer um trabalho de fôlego como este. É um álbum de dois compositores de estilos distintos, mas que aqui reuniram suas canções que têm algo em comum, sem exceção, certa alma suburbana. Não por acaso é Minha Alma Suburbana, um velho e pouco lembrado samba choro de Cláudio Jorge, gravado por Joanna em 1983, que abre o álbum com sua melodia lírica, seus versos sofisticados: “Sempre esperando da vida/Tudo que se pede mas pouco se tem/Cheiro da noite é de dama/Eu falo na alma suburbana”.
Que faz par com outro samba-choro suburbano de Guinga, em parceria com a cantora e violonista Anna Paes, Largo Das Cinco Bocas, composto em homenagem a Aldir Blanc quando do seu falecimento em 2020, mas na verdade uma ode aos subúrbios e seus nomes poéticos e à poética suburbana do parceiro que se ia: “Água Santa, Piedade/Tô Encantado de você/Já nem sinto mais saudade/Saudade tem Cascadura, amacia em Madureira”. Nas duas faixas, Guinga e Cláudio Jorge misturam seus violões sem qualquer exibicionismo, mas com suas expressividades naturais, como quando em Minha Alma Suburbana Cláudio Jorge faz o violão base (sua especialidade) e Guinga trabalha os solos.
Mas é igualmente fascinante quando Cláudio Jorge faz sozinho, voz e violão, uma densa canção de Guinga como Sábia Negritude, uma homenagem ao seu universo, o do samba, e que é feito no seu estilo mais, digamos, suingado e limpo. Ou quando Guinga canta, com sua voz lírica e seresteira, um samba de Cláudio Jorge e Nei Lopes em homenagem à Dona Ivone Lara, Senhora da Canção, como se o chorão e modinheiro Guinga reencontrasse o samba da sua Madureira natal. Cláudio Jorge traz duas músicas inéditas para este Farinha do Mesmo Saco. Delicadíssima obra-prima como tantas que a dupla fez, Bom Bocado é um samba-choro em parceria com Nei Lopes, outro suburbano, do Irajá. Versa sobre as delícias culinárias e amorosas do subúrbio, e lembra os sambas-choros de Claudionor Cruz e Pedro Caetano gravados antigamente por Orlando Silva ou Silvio Caldas, mas em linguagem atual, e cantada em estilo moderno e preciso por Anna Paes (que além de parceira de Guinga acabou de lançar um álbum pela Kuarup, cantando apenas músicas dele, Você, Você).
Outra inédita e feita para o disco é o samba Bilhete Pro Guinga, parceria de Cláudio Jorge (aqui letrista) com o maestro Gilson Peranzzetta (suburbano de Braz de Pina), e que descreve o reencontro dos dois, que resultaria no disco: “Ah meu velho amigo, tá fazendo tanto tempo/Lembro, lembra?/Era tudo sonho, hoje é história/Eu preciso te encontrar”. Chorando Pelos Dedos, melodia de Cláudio Jorge e letra de João Nogueira, é justamente do tempo em que tudo era sonho. Feita em homenagem ao bandolinista Joel Nascimento, hoje é um choro histórico, uma rara incursão de Cláudio Jorge no universo habitual de Guinga, e que permite aos dois trançarem lindamente seus violões e vozes.
Compositores cheios de parceiros, Guinga traz sozinho em voz e violão uma canção feita com o seu discípulo Edu Kneip, a villalobiana Mar de Maracanã, uma ode ao velho estádio, ali na boca de entrada do subúrbio. E Cláudio Jorge traz um samba em parceria com Luiz Carlos da Vila (suburbano da Vila da Penha), Parceiros e Amigos, uma magnífica ode à parceria e à amizade que se traduz musicalmente na nova e bela introdução ao violão que Guinga preparou para ela. Por falar em parcerias antigas, profundas, do tamanho da vida, Guinga traz sua canção, feita também com Anna Paes, Mello Baloeiro, uma homenagem ao artista plástico Mello Menezes, cantada de forma sentida por ele e Cláudio Jorge. Autor das capas dos primeiros discos de Guinga, como Simples e Absurdo e Delírio Carioca, Mello Menezes também fez a capa deste Farinha do Mesmo Saco. Bem ao seu estilo, Mello compôs uma colorida fantasia visual suburbana, a partir da imagem arquetípica do subúrbio, a estação de trem, dois pierrôs apaixonados subindo a escada rumo à plataforma. Como Cláudio Jorge e Guinga há mais de 50 anos quando tudo era sonho, hoje é realidade de dois músicos geniais que levam a música e o jeito do subúrbio para o Brasil e o mundo. E que agora são histórias contadas neste álbum, um acontecimento raro para a música brasileira.
P.S.: Da nuvem de onde agora observa o mundo, ao lado de Tom Jobim e cercado por anjinhos cor de chope, espécie de Paquetá, de Muda do céu, Aldir Blanc observa seus parceiros orgulhoso (e também meio invocado: “Porra, Zeca (Mello Menezes), Guinga e Cláudio Jorge são mesmo muito escrotos, esperaram eu tirar o time para armar essa maluquice no subúrbio…”).
Hugo Sukman, outubro de 2022
Cláudio Jorge nasceu na cidade do Rio de Janeiro e nos seus 50 anos de carreira já atuou em vários setores da atividade musical. Eminentemente ligado à música popular, particularmente o samba, sua trajetória profissional teve início por volta dos 20 anos quando foi atuar como violonista de compositores importantes da chamada Velha Guarda, tais como, Ismael Silva e Cartola. Mais tarde participou de shows e gravações ao lado de outros veteranos, como Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus. Seu primeiro trabalho como produtor de discos foi o elepê de Roberto Ribeiro Corrente de Aço (1985) para a EMI-Odeon. O primeiro trampo em disco como cantor e compositor é de 1980. De lá para cá, suas composições foram gravadas por Emílio Santiago, Elymar Santos, Ângela Maria, Joana, Élson do Forrogode, Alaíde Costa, Zeca Pagodinho, Elza Soares, Roberto Ribeiro, Zezé Mota, Jorge Aragão, Martinho da Vila, Joel Nascimento, Sivuca, Luiz Carlos da Vila e grupo Arranco de Varsóvia, entre outros. Violonista dos mais requisitados, Cláudio participa de vários concerto pelo Brasil e Exterior, além de atuar em inúmeras sessões de gravações nos discos de artistas como Sivuca, Martinho da Vila, Simone, Renato Russo, Ney Matogrosso, Leny Andrade, Roberto Ribeiro (do qual também foi produtor de um dos seus discos), Ismael Silva, Clementina de Jesus, Alcione, Leila Pinheiro, Fátima Guedes, João Donato, Lecy Brandão, Carlos Lyra, Beth Carvalho, Ivan Lins, Fundo de Quintal e João Nogueira. Com várias atuações internacionais destacam-se as participações como violonista em gravações de Sérgio Mendes, Diana Warwick, Lisa Ono, e Sebastião Tapajós, além de ter músicas de seu disco Coisa de Chefe incluídas em coleções como Carnival em Rio do fotógrafo Terry George e de uma coleção infantil da gravadora norte-americana Putumayo. Em 2001 fundou com Paulinho Albuquerque e Guilherme Reis a gravadora Carioca Discos, dedicada à produção do samba carioca. Em julho de 2002 Coisa de Chefe foi um dos cinco álbuns indicados para disputar o prêmio Grammy Latino na categoria melhor disco de samba.
Em 2019 lançou o quarto disco autoral, Samba Jazz de Raiz, dedicado às influências do samba e do jazz em sua composição. Em 2020 os primeiros discos gravados pela EMI-Odeon entre 1980 e 1981 foram relançados pela Universal Music, nas plataformas digitais. E Samba Jazz de Raiz venceu o Grammy Latino na categoria melhor disco de samba.
Carlos Althier de Souza Lemos Escobar é o nome de pia do carioca Guinga, da Zona Norte, onde nasceu em 1950 e fica o bairro emblemático de Madureira, seu berço. Foi por cinco anos aluno de violão clássico de Jodacil Damasceno e começou a compor aos 16 anos. Trabalhou profissionalmente como violonista, acompanhando Clara Nunes, Beth Carvalho, Alaíde Costa, Cartola e João Nogueira. Músicas de de sua autoria estouraram gravadas por Elis Regina, Michel Legrand, Sérgio Mendes, Leila Pinheiro, Chico Buarque, Clara Nunes e Ivan Lins, alguns nomes de uma copiosa lista. Entre os parceiros estão Paulo César Pinheiro, Aldir Blanc, Chico Buarque, Nei Lopes, Sérgio Natureza, Nelson Motta, Simone Guimarães, Francisco Bosco, Mauro Aguiar e Luís Felipe Gama. Guinga já tem duas dezenas de álbuns gravados e é reverenciado pela crítica, com frequência cada vez maior como o maior e o mais importante compositor brasileiro da atualidade.
Em 2002, Guinga, sua foi biografia escrita pelo jornalista Mário Marques (Guinga, Os Mais Belos Acordes do Subúrbio, pela editora Gryphus). Em 2003 saiu o songbook A Música de Guinga, também pela editora Gryphus). Rasgando Seda, em parceria com o Quinteto Villa-Lobos, lançado pelo Selo SESC-SP em 2012, foi indicado ao Grammy na categoria Melhor Disco Instrumental de 2012. O seu mais recente trabalho, Roendopinho, do selo alemão Acoustic Music Records, vem colecionando elogiosos entre os críticos especializados.
A Kuarup enviou gentilmente ao Barulho d’água Música o álbum Farinha do Mesmo Saco, pelo qual agradecemos ao diretor artístico da gravadora e produtora Rodolfo Zanke e a toda sua equipe.
Especializada em música brasileira de alta qualidade, o seu acervo concentra a maior coleção de Villa-Lobos em catálogo no país, além dos principais e mais importantes trabalhos de choro, música nordestina, caipira e sertaneja, MPB, samba e música instrumental em geral, com artistas como Baden Powell, Renato Teixeira, Ney Matogrosso, Wagner Tiso, Rolando Boldrin, Paulo Moura, Raphael Rabello, Geraldo Azevedo, Vital Farias, Elomar, Pena Branca & Xavantinho e Arthur Moreira Lima, entre outros.