1614 – Álbum inédito do paulistano Grupo Um, guardado desde 1975, é lançado pelo selo inglês Far Out Recordings

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Starting Point marcaria o início de um dos conjuntos instrumentais mais ousados do Brasil, quando, há quase 50 anos, os autores ainda formavam um trio que, como outros artistas na época, não encontrou gravadora

* Com Irati Antonio, Utopia Records

Uma raridade formada por seis faixas instrumentais, inédita desde 1975, acaba de ser gravada em formato laser e vinil pela gravadora inglesa Far Out Recordings¹: o disco Starting Point, que, apesar de enfim receber por um selo gringo merecidíssima atenção quase 50 anos depois, é do Grupo Um, formado naquele ano pelos irmãos Lelo Nazario e Zé Eduardo Nazario e que convidaram Zeca Assumpção para se juntar às suas experiências musicais. Na época, os Nazario e Assumpção já integravam a patota de Hermeto Pascoal ao lado do guitarrista Toninho Horta e do saxofonista Nivaldo Ornelas. O trio formava a seção rítmica (piano, baixo e bateria) e ficou conhecido como “cozinha paulista” do Bruxo dos Sons, pois eram os únicos do estado de São Paulo.

O Grupo Um nasceu sob o clima opressivo da ditadura militar no Brasil, mas no underground combinava ideais de vanguarda com jazz contemporâneo e ritmos afro brasileiros, o que resultava em uma música livre e expressiva em total contraste com as condições estéreis e conservadoras impostas pelo sistema dominante. Ao desenvolver seu primeiro material, entrou no então recém-inaugurado estúdio Vice-Versa (e que viria a ser um dos melhores de São Paulo, fundado por Luiz Carlos Sá, Guarabyra, Rogério Duprat e Luiz Augusto Botelho)² e – durante dois dias daquele ano de 1975 – gravou Starting Point, com Lelo tocando piano, piano preparado e Fender Rhodes, Zé Eduardo bateria e percussão e Assumpção nos baixos. Os Nazario procuraram lançar o disco na indústria fonográfica, mas, assim como outros músicos da época, não encontraram gravadora.

Lelo, então, guardou as fitas originais nestas longas cinco décadas e, assim, o que seria o bolachão de estreia do Grupo Um permaneceu inédito por cerca de meio século. Após esta primeira gravação, o Grupo Um ampliou as investigações musicais, agregou outros componentes e criou um novo repertório, que deu origem à segunda sessão de estúdio, em 1977,  para produção de material que também está arquivado e inédito. Mais tarde, com a criação de novas composições, o Grupo Um lançou, enfim, em 1979, o que veio a ser o álbum de estreia, hoje o icônico Marcha sobre a Cidade. Para tanto, os irmãos levaram as mãos aos próprios bolsos para financiar a empreitada que rendeu o primeiro elepê instrumental independente do país, alcançou repercussão e projetou o grupo no cenário da música de vanguarda.

A Far Out Recordings, finalmente, traz a público este fascinante pedaço da história que estava guardado. O legítimo álbum de estreia do Grupo Um inclui começa por Porão da Teodoro, um solo de bateria que serve de portal para o disco, em referência à rua Teodoro Sampaio e ao teatro Lira Paulistana, que ficava na Praça Benedito Calixto, colado à Teodoro, no bairro paulistano de Pinheiros. Depois vem Onze por Oito, introduzida por berimbau seguido de um improviso ao piano Fender Rhodes de Lelo; a linha de baixo e o piano introduzem o mote principal em 11/8 sobre o qual a música é construída. Organica é uma base com piano, percussão e baixo e foi gravada, primeiro, ao piano preparado, dobrado.

Suite Orquídea Negra tem três partes. É uma trilha para um filme imaginário: Lelo idealizou a história de uma rara orquídea negra que sintetizava uma substância importante para a cura de doenças e que desapareça do laboratório, misteriosamente. Se como roteiro a ideia não é muita boa, a música ficou top: a maneira como as partes da suíte se encadeiam traz um pouco do mistério que o compositor imaginou para ver se desenrolar nas telonas.

Muitos instrumentos de percussão que Zé Eduardo usava na época foram criados ou adaptados por ele, com destaque para a longa lâmina de serra (tocada com baquetas de vibrafone ou arco de violino), cujo som se modificava quando dobrada. A inovação pode ser ouvida em Jardim Candida, composta só para percussão. Cortejo dos Reis Negros fecha a obra. Baseada em um maracatu com estrutura invertida, a música começa com um improviso de piano sobre a base rítmica e só depois entra o tema, cantado em vocalise pelo trio. A estrutura se repete e, ao final, brinda o ouvinte com a luxuosa participação de Bolinha, a querida cadelinha do Zé, registrada com um latido inconfundível.

As fitas originais de Starting Point foram restauradas e masterizadas com todo o cuidado por Lelo Nazario para os formatos em vinil e digital. O volume traz encarte com textos dos irmãos Nazario e fotos inéditas da época, também restauradas por Lelo.

O álbum pode ser ouvido e adquirido pelo link abaixo:

https://www.faroutrecordings.com/collections/grupo-um/products/grupo-um-starting-point

O Grupo Um é considerado pela crítica um dos mais ousados, densos e radicais experimentos sonoros já empreendidos no Brasil. Formado em 1976 pelo pianista e compositor Lelo Nazario e pelo baterista e percussionista Zé Eduardo Nazario, que, na época, atuavam na banda de Hermeto Pascoal, o grupo se destacava como um representante de ponta da vanguarda surgida em torno do Teatro Lira Paulistana, combinando a riqueza rítmica da música popular com linguagens contemporâneas.

Naquela época, tanto a linguagem da música eletrônica e eletroacústica quanto o uso da percussão de ponta já nos eram habituais, de forma que todas as nossas composições e arranjos possuíam uma identidade própria”, contou Zé Eduardo. Liderado pelos irmãos Nazario, o conjunto atuou até 1984 e contou com a participação dos baixistas Zeca Assumpção e Rodolfo Stroeter, do percussionista Carlinhos Gonçalves, dos saxofonistas Roberto Sion, Mauro Senise e Teco Cardoso, e ainda do pianista Felix Wagner.

Em diferentes formações, o grupo lançou antes de Starting Point três álbuns que mostram linguagem própria, aberta e contemporânea. Juntos, formam uma obra consistente e refletem uma concepção arrojada e uma proposta estética inovadora que expressam as marcas e questões do nosso tempo. “A música do grupo é música brasileira do tempo presente, multidimensional e transformadora”, disse Lelo à época. Ele assinou a maioria das composições tocadas pelo grupo.

A música nova e independente do Grupo Um conquistou uma audiência considerável nas principais cidades brasileiras e despertou o interesse imediato da crítica especializada, que lhe dedicou elogios entusiasmados nos mais importantes veículos da imprensa nacional, projetando o conjunto num plano de destaque da criação musical mais avançada da década de 1980.

O álbum de estreia (1980), Marcha Sobre a Cidade, foi o primeiro elepê instrumental independente produzido no país, considerado como um dos registros mais importantes da música instrumental brasileira. Marcha Sobre a Cidade foi aclamado pelo público e recebido pela crítica como “verdadeiro manifesto free”, “um jazz criativo que desconhece barreiras” e que “representa um passo à frente na música instrumental no Brasil”. Um disco “para quem não parou no tempo”.

Essa projeção no cenário musical brasileiro logo se estendeu à Europa, onde o grupo lançou Marcha Sobre a Cidade pela gravadora francesa Syracuse em 1983 e realizou uma série de apresentações, incluindo concertos na então famosa casa de jazz New Morning, em Paris, na Radio France e no Festival de Jazz de Grenoble.

Além de uma música consistente e densa, que incorporava elementos contemporâneos do jazz e da música erudita e uma rítmica moderna com raízes tradicionais, o Grupo Um foi reconhecido pelo talento e versatilidade de seus integrantes. Uma das características do grupo era, justamente, a colaboração de cada músico na realização dos temas, seja nas improvisações coletivas ou sugerindo novos motivos. Em março de 1980, em resenha intitulada “Um grupo de vanguarda”, a respeito do disco Marcha Sobre a Cidade, o crítico José Domingos Raffaelli destacou “a maturidade dos músicos”, que lhes permitia “todo o tipo de liberdades melódicas, rítmicas e sonoras, explorando habilmente as facetas de cada composição”.

Em entrevista ao semanário de música Canja, em julho daquele ano, o compositor Lelo Nazario sintetizou seu processo de trabalho no grupo: “eu faço música erudita, mas deixo certa margem de liberdade para a improvisação. É por essas pequenas brechas que entram os elementos jazzísticos próprios da formação musical de alguns instrumentistas, como o Zé Eduardo ou o Mauro Senise”.

Em 1981, foi a vez de Reflexões Sobre a Crise do Desejo, também uma produção independente. Segundo Lelo, o disco reafirmava “o compromisso do Grupo Um com essa mistura especial de música de vanguarda, o jazz e a música brasileira contemporânea”. Reconhecido pela revista Manchete como um dos dez melhores álbuns lançados naquele ano, aqui, o conjunto desenvolveu alguns de seus temas mais complexos, reunindo composições extremamente elaboradas com uma técnica musical incrivelmente apurada, atingindo resultados impressionantes.

Para o crítico João Marcos Coelho, da Folha de S. Paulo, o Grupo Um se afirmava “como o mais fecundo núcleo de criação, porque mergulhou em uma produção musical sistemática, sem concessões”.

O terceiro álbum, A Flor de Plástico Incinerada, foi lançado pelo selo Lira Instrumental em 1983. Seguiu os passos dos discos anteriores, embora o grupo tenha aprofundado o uso de sons eletrônicos/concretos e sintetizadores combinados com instrumentos acústicos, tendência iniciada em Reflexões…, inovação à época. Roberto Muggiati, crítico da Manchete, escreveu na ocasião que A Flor de Plástico se mostrava “mais comprometido com a música instrumental contemporânea, sem nenhum sotaque, incursionando pela música de vanguarda, sem cair na monotonia”.

Já em 2016, pelo Selo Sesc, saiu o disco  Uma Lenda ao Vivo Jazz na Fábrica.

NOVO PADRÃO DE CRIAÇÃO – Após completar um ciclo de intensa criação, o Grupo Um se dissolveu em 1984. Em oito anos de atividades, que viera anunciar uma era de inquestionável inventividade e pioneirismo, avançou as fronteiras da produção independente e da moderna música instrumental brasileira. Sua trajetória representou uma abertura para o músico brasileiro e estabeleceu um novo padrão de criação, dando origem a uma lenda.

Antes de Starting Point, quase 40 anos após o Grupo Um surgir, os três primeiros álbuns que chegaram ao mercado foram relançados em formato digital pelo selo Editio Princeps. Nas gravações resgatadas é fácil ver por que o conjunto permanece o mais fecundo e ousado núcleo de criação da música de vanguarda no Brasil. Marcado por um pensamento musical altamente estruturado, por um experimentalismo de ponta e por uma total liberdade criativa, o grupo sintetizou a busca constante e sem concessões por uma música essencialmente brasileira e contemporânea, cujo resultado chega até hoje insuperável e atemporal.

Mesmo após décadas de sua dissolução, o Grupo Um representa, ontem e hoje, a vertente mais ousada e moderna da música brasileira. Em março de 2017, foi atração no conceituado projeto da unidade Consolação do Sesc Consolação, o Instrumental Sesc Brasil. Naquela ocasião, levou ao palco os irmãos Nazario, Senise, Felix e Frank Herzberg Bassit. 

¹A Far Out Recordings tem uma página eletrônica em https://www.faroutrecordings.com/ que vale a pena ser visitada e pela qual podem ser adquiridos vários dos discos que o selo mantém em catálogo.

Do A ao V (pulando o Q, sem W, X, Y e Z) a lista inclui dezenas de nomes de ponta da MPB, tais quais Antonio Adolfo, Banda Black Rio; Chico Anysio & Arnaud Rodrigues, Eumir Deodato, Grupo Batuque, Hermeto Pascoale Grupo Vice-Versa (gravado em vinil verde cana); Itiberê Zwarg; Joyce Moreno; Leila Pinheiro e Nelson; Milton Nascimento, Naná Vasconcelos, Orquestra de Tambores de Alagoas; Phillipe Banden Powell, franco-brasileiro filho de Baden Powell; Satanique Samba Trio (que apesar do nome aparece em uma foto como quinteto!); Tuty Moreno; Ulisses Bezerra, filho do lendário Bezerra da Silva; e Victor Assis Brasil.

Quatro das capas de autores brasileiros que a gravadora inglesa mantém em seu catálogo

² O Vice-Versa ocupou um prédio, já demolido, na rua Alves Guimarães, 170, em Pinheiros. Alguns metros acima, no número 309 da mesma rua, hoje fica a sede da Produtora e Gravadora Kuarup, que também foi a primeira casa do cantor e compositor Renato Teixeira em Sampa. Saiba mais sobre o Vice-Versa ao visitar as crônicas de Sá e Guarabyra em https://www.revistabackstage.com.br/colunas/luizsa/a-vice-versa-ter-um-estudio-e-desdobrar-fibra-por-fibra

Sá e Guaraybra são dois dos fundadores do Estúdio Vice-Versa, que ficava na cidade de São Paulo

Para saber mais sobre o Grupo Um visite https://www.lelonazario.com.br/

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